
Toca a
música Mad About You da banda Hooverphonic.
Las Vegas, Outubro de
2013.
Seu quarto parecia mais solitário naquele dia. O copo de conhaque não
conseguia esquentá-la, assim como não a fazia esquecer-se daquele pavoroso dia.
Estava tudo ficando embaçado diante dos seus olhos, pois não era a primeira
gota de álcool que ela colocara na boca naquele instante. Vinha bebendo
insistentemente depois de ver, em sua velha TV, no seu quarto imundo cujo era
seu esconderijo secreto, ele, o homem que ela queria ver na cova ou ser
enterrada junto a ele: o agente do FBI Nicholas Collins.
Ele não era
mais agente; recebera, naquele dia, o título de secretário de segurança dos
Estados Unidos da América. Era um dia feliz, saíra nos jornais e na TV. Nick
Collins estava sendo prestigiado e, mesmo depois de tantos anos, Jacqueline
sentia a inveja tocar seu coração e esquentá-lo. “Eu deveria estar ali. Eu era a melhor agente do FBI, mas Tyler, Cindy,
Nick e toda a corja de baba ovos filhas da puta me impediram disso”, pensava
Jacqueline, segurando com todas as suas forças o copo de conhaque. Ele trincou,
quebrou e o vidro vagabundo furou sua mão. O sangue vermelho e quente de ódio e
inveja de Jacqueline Adams tomava de conta daquele colchão, que um dia fora
branco.
O jornal
mostrava em primeira mão uma entrevista com Nick Collins. Na foto estava ele,
sua esposa Cindy Crawford e o filho do casal, Benjamin, de oito anos. Em outra
foto, Nick apertava a mão do presidente.
— Sim, Nick.
Sim! Eu te amava... ao mesmo tempo em que almejava a sua inteligência, sorte e
a sua posição no FBI. Tudo se desfez... menos a sua vida. Isso não é justo. —
os olhos de Jacqueline Adams marejavam, talvez por arrependimento ou ainda pela
inveja. Era tarde demais para qualquer ato de restauração.
Jacqueline
Adams usou a edição do The New York Times
daquele dia para estancar o sangue que saía do ferimento de sua mão esquerda.
Fora um dia
cansativo. Nick pôs a cabeça no travesseiro e esperou sua esposa Cindy, que
estava colocando Benjamin para dormir, entrar no quarto. Sentia-se um novo
homem, mais realizado, feliz. Estava casado com uma bela mulher, tinha um filho
inteligente e agora fazia parte da vida política do país, num posto cobiçado
por muitos e alcançado por poucos.
Mesmo após
tanto tempo, contudo, Nick, ao fechar os olhos, recordava nitidamente o dia do
incêndio em que ele quase perdera a vida e viu a vida de Jacqueline Adams, sua
admiradora secreta, acabar. Seu corpo nunca foi achado. Suspeitavam de que a
médica legista havia virado cinzas, fazendo o trabalho do FBI ser impossível. “Nenhum osso, nenhum pedaço de carne.
Estranho”, sempre pensava Nicholas antes de dormir ou até mesmo, às vezes,
ao fazer amor com sua esposa.
— Terra
chamando Nick! Ou melhor: o mais novo secretário de segurança pública dos
Estados Unidos! — disse Cindy. Uma camisola branca cobria seu corpo negro,
escultural. Nick a beijou, dominando-a e colocando o corpo dela abaixo do seu.
— Devo tudo
a você, minha Cindy. A você, e ao nosso querido Benjamin.
— Você me dá
orgulho. Bendita a hora em que você me usou para uma investigação, lembra?
—Cindy sorriu.
Ele
respondeu à mulher com um ardente beijo. Nick gostava de beijar Cindy com os
olhos fechados, todavia, naquela ocasião, ele os abriu. Não era mais Cindy que
estava lá: era Jacqueline. O rosto dela parecia derreter, como no dia do
incêndio. Ela pronunciava as mesmas últimas palavras antes de sua suposta
morte: “EU SEMPRE TE AMEI”. Na
verdade, era Cindy que gemia de prazer. Ela notou que seu marido estava em
outro mundo, fingiu um orgasmo e virou-se na cama.
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Toca a música Heart
of Gold, de Johnny Cash.
Os dias foram se passando e chegara
finalmente o Halloween. Benjamin Collins queria sair e pedir doces, como fez
nos últimos poucos anos de sua vida. O garoto, fantasiado de vampiro, estava
sentado no banco do jardim de sua casa, esperando o pai, Nick, que prometera
chegar cedo do trabalho para sair com ele, já que Cindy, sua mãe, ficaria de
plantão no FBI, onde trabalhava como investigadora.
As babás e
as demais empregadas estavam ocupadas fazendo um verdadeiro banquete para o
jantar e preparando os doces para as crianças que tão logo estariam à porta do
casarão propondo “gostosuras ou travessuras”.
Passaram-se
uma, duas, duas horas e meia após o horário prometido por Nick. “Papai não vem”, pensava Benjamin. O
menino desejava acima de tudo sair e mostrar às outras crianças do bairro o
quão sua fantasia de vampiro era especial. “Irei
sozinho”.
Estava tocando um CD de Johnny Cash
num carro, talvez bem longe, mas alto o suficiente para Benjamin cantar
enquanto andava pelo jardim em direção ao portão de saída da casa. A música, Heart of Gold, era familiar ao garoto,
pois seu pai sempre cantava para ele dormir.
Saiu da
casa, cruzando o portão e ninguém o viu. Benjamin continuava seguindo a música,
levando consigo a abóbora onde colocaria os doces que pediria. O carro estava
parado em frente à sua casa. Não era o de seu pai, mas bateria no vidro mesmo
assim, tinha esperanças de que fosse ele mesmo.
Seus cabelos loiros enrolados voavam
contra o vento, assim como a capa da fantasia. Bateu finalmente no vidro do carro
e a porta abriu. Uma mulher, com metade da face deformada saiu de lá e sorriu
para o pequeno Benjamin.
— Olá. Sou
uma antiga amiga do seu pai. Vamos sair, pedir doces? Tenho certeza de que ele
não ficará bravo. Me chame de Jacqueline.
A abóbora
caiu no chão e o carro deu partida.
