sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Faça Suas Apostas - 39 - Psicopatia plena



PALAVRAS DE ISAAC SANCHEZ

As circunstâncias pediam para que nós fossemos frios. E se tratando da vida de uma criança que estava em risco, eu nem pensei se tinha um cara baleado no meio da sala daquela casa. Apenas puxei Valeska pelo braço e corri com ela até o meu carro, pois se tivéssemos sorte ainda poderíamos seguir e alcançar aquela orca sequestradora de crianças.
— Eu ainda não acredito... aquela bala poderia ter me acertado! — disse Valeska, histericamente, enquanto eu punha o cinto de segurança nela ao mesmo tempo em que me desdobrava para também mexer no volante.
— Mantenha a calma, amor! Não se esqueça que aquela psicopata está com o bebê.
Eu mantinha os olhos atentos à avenida, procurando um carro que fosse no mínimo suspeito. E eu vi ao longe um fusca cor-de-rosa. Era o dela.
— Parece que eu a encontrei. Agora precisamos segui-la e assim poderemos também encontrar o Márcio.
— Por favor, Isaac, tenta não chegar muito perto do carro dela — pediu Valeska — ela está armada e se ela perceber alguma coisa estranha, pode fazer alguma coisa com o Gohan.
Sendo assim, mantive o máximo que pude de distância, para evitar que a gorda percebesse que estava sendo seguida. Tínhamos uma chance de encontrar o Márcio QI e salvar o pequeno Gohan.


PALAVRAS DE SHEILA DEL VECHIO

Eu corri com aquele moleque nos braços em direção ao meu carro, mas esqueci que para montar uma família era necessário no mínimo uma mãe, um pai e um filho. E eu havia esquecido o pai dessa possível família lá, na casa do garoto nerd.
No meio do caminho, fiquei tentada a voltar para buscar João Paixão, mas agora que eu tinha um grande trunfo nas mãos — o filho da Lara, no caso — eu não poderia correr o risco de colocar tudo a perder de novo. Acreditei que ele poderia se virar sozinho e voltar são e salvo para o nosso ninho de amor.
E eu não queria, nunca mais, ter que voltar para aquele inferno que era a prisão.
Enquanto eu dirigia, as imagens de tudo o que eu passei nesse meio tempo vinham à minha mente. Tudo havia sido um pesadelo, e me lembrar de tudo só aumentava a raiva que eu sentia daqueles fedelhos. Foi tudo por culpa deles! Eles nunca deveriam ter cruzado o meu caminho.
***
Quando fui transferida para aquele presídio imundo, logo após ser condenada a vários anos de prisão por inúmeros crimes — principalmente dois assassinatos — as presas que me fariam companhia na cela me olharam como se eu fosse um tipo de “carne nova no pedaço”. Eu sei que eu sou irresistível, mas eu não gostava de jogar no time delas, se é que vocês me entendem.
Uma delas era Yara: ela era muito gorda (e antes que vocês achem que eu não possa chamar ninguém de gorda, saibam que eu não sou gorda, sou gostosa!) e tinha um jeito de macho. Diziam que Yara era a presa mais barra pesada daquele presídio e que todos deveriam obedecê-la, mas ninguém conhecia a Sheila, a toda poderosa, que havia acabado de chegar no pedaço.
Acontece que Yara ficou com ódio por eu me recusar a “satisfazê-la”, então ela começou a me marcar. Aquela sapatona adorava me seguir por todos os lados, como no banho de sol, na hora das refeições e, claro, dentro da cela cuja ela dividia comigo.
Porém, ela não sabia com quem estava se metendo.
Certa noite, ela tentou me atacar enquanto eu dormia. Yara tentava colocar uma das mãos dentro da minha roupa enquanto com a outra segurava o meu pescoço com muita força.
Calmamente, deslizei minha mão para debaixo do colchão. Lá havia uma pequena faca a qual eu havia conseguido com uma das presas que também fora molestada por Yara. Eu seria a pessoa que vingaria todas aquelas mulheres.
De súbito, enfiei a faca na barriga da sapatona, que urrou de dor. Tratei de chutá-la e fazer com que ela caísse de joelhos, desesperada e tentando estancar o sangue. Yara gritava por socorro, até que as carcereiras ouviram e apareceram na nossa cela.
— O que é que tá acontecendo aqui? — perguntou uma das mulheres encarregadas de vigiar as celas.
Quando a carcereira viu Yara se esvaindo em sangue, tratou de abrir a cela para socorrê-la, porém eu fui esperta e tratei logo de usar aquela mulher como refém. Ela seria a chave para que eu pudesse sair dali.
Houve uma grande rebelião dentro do presídio. Na qual todas as presas foram libertas, por minha vontade. Eu apenas retirei o molho de chaves da cintura da calça da carcereira e joguei para uma das presas para que elas pudessem libertar umas às outras. Enquanto isso, mantendo a carcereira como refém, segurando a faca contra o seu pescoço, encaminhei-me até a saída, ameaçando todas as policiais que se elas tentassem qualquer coisa eu furaria a jugular de sua colega.
Eu consegui sair da prisão, assim como várias outras detentas. E eu pude sentir o gostinho de liberdade à medida que me encaminhava para mais distante daquele lugar.
Agora que eu já estava liberta, tratei de conseguir um jeito para tirar o meu pobre bebê João Paixão, que provavelmente estaria sofrendo muito no presídio masculino. Eu o amava tanto que seria capaz de fazer qualquer coisa perto de mim. E eu tinha certeza que ele me amava. O dinheiro de Giuseppe que eu havia roubado estava em um lugar seguro. Eu usei essa grana para pagar, em sigilo, um advogado para tirar meu Joãozinho da cadeia. Enquanto isso, eu arquitetava meu plano de retaliação.
Gabriela Carvalho, Márcio Ferrari, Valeska Soares e Lara Pacheco. Todos eles comeriam na minha mão. Todos eles conspiraram contra mim, impediram meus planos e agora eles pagariam o preço de ter mexido com a Sheila del Vecchio.
Ao mesmo tempo em que o advogado que eu contratara cuidava do caso da soltura do meu amado, consegui alguns documentos falsos, cortei meu cabelo bem curto, coloquei alguns piercingse tatuagens. Eu queria parecer uma daquelas roqueiras da televisão.
Eu estava pronta para começar a tocar o terror na vida daqueles moleques.
Eu lembro daquele dia: era o dia do aniversário de dezoito anos da Lara. Imaginei que ela já quisesse sair do convento (naquela época ela ainda estava lá) por ser maior de idade e resolvi fazer uma surpresinha para ela. O convento era afastado de tudo e de todos, então provavelmente as irmãs de lá nem imaginavam que eu havia sido presa e fugido da cadeia. E se suspeitassem de algo, nada poderiam fazer.
Eu estacionei meu carro perto do convento naquela noite. Vi quando uma garota saía correndo de lá desesperadamente até chegar num ponto de ônibus. Ela parecia fugir de algo. Era Lara, claro. Fiquei apenas observando e, quando pensei em tentar algo contra ela, seu ônibus apareceu e ela subiu.
Segui o ônibus freneticamente até chegar ao ponto onde ela descera: a rodoviária. O local estava muito cheio, mesmo àquela hora da madrugada. Eu tentei parecer o mais discreta possível, mas dentro do meu sutiã havia um revolver carregado pronto para acertar aquela garota. Bastaria apenas o momento certo.
E eu encontrei o momento certo. Atirei contra a sua barriga e um rapaz magro de cabelos compridos se meteu no meio da bala antes que ela chegasse em Lara. Eu não tinha mais chance, então resolvi fugir antes que as pessoas encontrassem o local de onde havia vindo o tiro.
Depois, fiquei sabendo que Lara estava em coma no hospital e que o seu filho — que por acaso o pai era aquele cara que se enfiara no meio da bala — havia nascido prematuro. Resolvi ficar um tempo quietinha no meu canto pois contava com a morte de Lara para poder prosseguir. Eu achei que aquela vaquinha não fosse resistir, mas ela estava se recuperando com a ajuda dos médicos daquele hospital particular e, claro, daquele nerdzinho do meu nojo que passava horas e horas ao lado dela.
Eu seguia todos eles o tempo todo para saber seus passos, tanto os de Márcio, quanto os de Valeska e Gabriela. Eu apenas esperava o momento certo para acabar com a vida de todos eles. Primeiro, prender Gabriela numa sala congelada, depois jogar uma cobra no carro onde Valeska estava. Quanto ao Márcio, resolvi sequestra-lo e tortura-lo, contando com a possibilidade daquelas duas garotas terem sobrevivido às minhas armadilhas.
E sobreviveram. Por isso, agora elas teriam de ir buscar o amigo delas, assim eu poderia ter todos eles juntos. Eu só precisava de três balas para lavar a minha honra com o sangue daqueles que destruíram os meus planos. E, em seguida, eu fugiria com João Paixão e o bebê para bem longe dali.
***
Eu despertei daquele devaneio e quase me esqueci que estava no meio de uma estrada e com um bebê sentado no banco do carona do meu carro. Eu olhei para aquele moleque e percebi que ele lembrava muito o rosto do avô, Giuseppe. Pensei não estar sendo radical demais levando comigo um pedacinho da família Pacheco, cuja eu pertenci durante anos. Era tarde para arrependimentos. João Paixão e eu criaríamos esse fedelho em outro país. Começaríamos uma vida nova e Lara ficaria viva para lamentar.
Estacionei o fusca cor-de-rosa em um lugar escondido e saí com o bebê nos braços. Ele fedia a cocô, xixi e leite azedo, o que me deixou com nojo. Comecei a subir o morro para chegar a favela onde ficava o meu esconderijo. Pretendia colocar em prática a segunda parte do plano: atrair Gabriela e Valeska para que eu pudesse dar um fim nelas.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI

Consegui deixar a corda fraca e rompê-la só depois de muito tempo. Com as mãos livres, pude retirar aquela mordaça e desfazer o nó da corda que prendia as minhas pernas.
Eu realmente havia perdido muito tempo, e estava muito nervoso pensando no que Sheila e João paixão poderiam estar aprontando nesse meio tempo. Consegui retirar a amarra das minhas pernas, porém, quando cheguei à porta do barraco para fugir, eis que alguém a abre.
Era ela, Sheila.
E ela estava com GOHAN em seus braços.
Dei dois passos para trás e Sheila me empurrou com toda força com a sua mão livre. Eu caí de costas no chão e pude vê-la sorridente e triunfante, com uma inocente criança nos braços.
Ela tinha tudo o que ela queria.
Quase tudo.
— Para onde pensa que vai? — perguntou, sarcástica. Colocou sua mão direita na cintura ao mesmo tempo em que usava sua mão esquerda para segurar Gohan contra o seu seio. Me dava ânsia de vômito saber que o meu pequeno estava nas garras daquela gorda e eu nada poderia fazer naquele momento apenas para o bem dele.
Gohan começou a chorar.
— Levanta daí! — ordenou Sheila e assim o fiz. Eu faria qualquer coisa se ela me garantisse que deixaria o Gohan bem. A gorda, então, entregou o bebê para que eu segurasse e tirou seu celular do bolso. — Me diz, qual é o número da Gabi? Quero ligar pra ela e para a Valeska. Faremos uma pequena reunião. O que acha?
— Deixe minhas amigas em paz! Qual é o seu problema hein, Sheila?
Sheila sacou seu revólver e apontou para mim e para Gohan.
— Me dá logo a porra do número da sua amiga ou eu estouro seus miolos! Se você se diz tão inteligente, então coopere!
Comecei a ditar os números da Gabi e Sheila digitou no seu celular um a um. Eu poderia dizer que não lembrava de cor, mas contava com a Gabi e um de seus planos mirabolantes para nos ajudar a sair dessa.
Era tudo ou nada.

***

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO
Desliguei o celular, perplexa. Eu nunca tive tanto medo na minha vida como naquele momento. Era como se o peso do mundo estivesse nas minhas costas e qualquer passo que eu desse poderia fazer com que tudo desabasse.
— Quem era? Que cara é essa? — Max perguntou, baixinho. Lara dormia ao meu lado, depois de finalmente ter se acalmado. Mas se ela soubesse qual o motivo da ligação que eu acabara de receber, ela surtaria de novo.
Levantei-me da cama do hospital e puxei Max pela manga de sua camisa até o lado de fora do quarto, para que pudéssemos conversar no corredor.
— Era a Sheila. — exprimi — ela está com Márcio. E com Gohan! Gohan é o filho da Lara. Se ela descobre, Max, eu não sei o que pode acontecer.
— Calma. A sua amiga Valeska não estava com o bebê? Pode ser um blefe dessa gorda.
Liguei para Valeska e ela me atendeu quase que antes do primeiro toque. Ela estava desesperada:
— Gabi, a Sheila, ela pegou o Gohan! Amiga, aconteceu tanta coisa!
— Onde você tá? — minhas mãos tremiam e era difícil manter o celular contra o meu ouvido. Minha cabeça latejava, parecia que a qualquer momento iria explodir.
— Isaac e eu seguimos a gorda. Felizmente a gente sabe onde ela está escondida, mas a gente ainda não foi até lá apenas por medo que ela faça alguma coisa com o Márcio e com o Gohan.
O fato de saber para onde Sheila havia levado os garotos já me aliviava um pouco. Em contrapartida, era difícil de acreditar que Sheila estaria disposta a nos deixar em paz depois de tudo o que ela fizera até ali.
— Valeska, fiquem aí. Não desgrudem o olho, nem por um momento. — enquanto eu falava ao telefone, concentrada, Max começou a cutucar meu ombro — Pelo amor de Deus, não chamem a polícia — Max me cutucou mais forte e aquilo estava me estressando. — Valeska, preciso desligar, quaisquer notícias do Gohan ou do Márcio você me liga, ouviu bem?
Desliguei e, em seguida, olhei furiosa para Max. Antes de começar a gritar com ele, percebi que ele apontava para a porta do quarto. Lara estava lá, pálida, de pé, vestindo aquela bata branca e nos fitando horrorizada. Suas pernas se tremiam e ela se apoiou na lateral da porta.
Ela havia ouvido e naquele momento eu precisava esclarecer tudo para ela.
— Gabriela, o que está acontecendo? O que houve com o Márcio e o meu filho? — Lara voltara ao seu semblante nervoso. Tentei me aproximar dela.
— A Sheila. Ela...
— Ela está com o meu filho, não é? Sheila vai fazer alguma coisa de ruim com o Márcio e com ele. Aquela mulher é louca, ela quis me matar. Ela não hesitaria em mata-los também. — as lágrimas desciam pela face da garota, que lutava para se manter em pé — Eu não vou aguentar se alguma coisa acontecer com eles. Eu não vou aguentar ver aquela mulher impune novamente depois de ter matado alguém que eu amo! Foi assim com o meu pai, foi assim com o Douglas... — Lara se desequilibrou e Max e eu corremos para ajudá-la antes que ela caísse. — ... eu não sei se eu vou querer ver Márcio e Gohan tendo suas vidas massacradas por minha causa.
Não falamos nada. Max pegou Lara nos braços e a colocou novamente em cima da cama do quarto do hospital. Conversamos a noite toda enquanto eu tentava arquitetar um plano, mas nada me vinha à mente. Valeska e Isaac continuavam de campana em frente ao ‘barraco’ cujo Sheila mantinha Marcio e Gohan como reféns.
Max teve uma ideia:
— Lara, aquela mulher, ela tem algum medo? Tipo, alguma coisa já a traumatizou?
Lara ficou pensativa enquanto eu tentava esfriar a sopa que a enfermeira havia acabado de trazer para ela. Seria difícil fazer aquela garota comer alguma coisa naquelas circunstâncias.
— Não... eu não sei.
— Eu também não imagino aquela gorda correndo com medo de alguma coisa. — falei. — Mas por quê a pergunta, Max? Não fica enchendo a cabeça da garota com isso, pô!
— Sei lá, achei que a gente pudesse armar algum plano.
— As vidas de uma criança e do nosso amigo estão em jogo!
— Esperem! — Lara interveio — Pode parecer meio bizarro ou meio bobo, mas eu me lembro de uma coisa que fez a Sheila surtar quando eu era criança.
— Fale, pode ajudar em alguma coisa!
— Eu sempre quis ter um bicho de estimação, mas Sheila nunca concordava com nada que eu fazia ou queria. Papai sempre fazia os gostos de Sheila, mas... Mas acontece que eu não suportava a ideia de obedecer aquela mulher. Ela não era a minha mãe! Tentei trazer cachorrinhos, gatinhos abandonados para casa, mas ela sempre dava um jeito de sumir com eles ou colocava o meu pai contra mim. Fazia ele acreditar que os animais me trariam doenças ou que eu não estava sendo uma boa filha e por isso não merecia nada.
— E aonde você quer chegar? — perguntei.
— Certa vez, eu estava passando em frente a um pet shop, quando voltava da aula, sozinha. Eu vi um coelhinho branco, sozinho numa gaiola. Eu fiquei com muita pena dele e não tive outra escolha a não ser leva-lo pra minha casa.
— Não me diga que a Sheila deu um fim nele também? — perguntei.
— Quando ela viu o coelho, no meu quarto, ela surtou. Mas não foi de raiva, foi de medo. Ela começou a gritar, saiu correndo abanando os braços, parecia que havia visto um rato. Daí eu peguei o coelho e saí perseguindo ela pela casa toda. Acho que aquele foi um dos dias mais engraçados da minha vida. — Lara deu uma pequena risada.
— Então quer dizer que Sheila tem medo de coelho? Gente, eles são tão fofinhos! É mais fácil os coelhos saírem correndo com medo daquela orca.
— Galera, eu tive uma ideia! — exclamou Max — A gente pode conseguir um coelho e ameaçar a Sheila com ele. Se ela tem tanto medo assim como a Lara falou, vai ser tiro e queda.
— A Sheila tem pavor! Podem confiar, acho que esse plano pode dar certo. — Lara falou.
— E eu sei de um lugar onde existem os coelhos certos para esse plano. — Maximiliano esfregou as mãos e sorriu maliciosamente, certo de que derrotaríamos a gorda com aquele plano maluco.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI
De uma hora para outra, a única lâmpada que havia no barraco queimou. Sheila ficou furiosa e queria descontar em mim. Estávamos no escuro com uma maluca e não tínhamos para onde ir. Gohan chorava muito, mesmo depois de eu ter trocado sua fralda. Ele estava com fome, com certeza, e não tinha nenhum tipo de comida de gente normal para dar pra ele.
Sheila assistia TV, sentada em cima da cama e comia dois hambúrgueres, uma porção grande de batatas-fritas, juntamente com um litro de Coca-Cola, cujo ela bebia direto da boca da garrafa. A cena era bastante horrenda.
— Manda esse moleque calar a boca, tô vendo TV. — disse Sheila.
— Ele tá com fome. — respondi, enquanto tomava Gohan nos braços e o balançava, na tentativa de fazer ele parar de chorar.
— Meus peitos não têm leite. Faz ele parar logo de chorar ou...
— Você não pensa em nada mesmo, não é, sua gorda? Se você quer tanto o Gohan como filho, aja como mãe — falar aquilo causou um pouco de repulsa de mim mesmo — Levanta essa bunda cheia de banhas de cima dessa cama e aja! O garoto não vai parar de chorar enquanto não comer!
Sheila abandonou todas as suas guloseimas em cima da cama, levantou-se e caminhou até a mim. 1Apertei Gohan contra o meu peito, protegendo-o contra quaisquer futuros perigos que a gorda poderia lhe causar.
— Olha, seu insolente, quando o meu João Paixão chegar eu vou pedir pra ele te dar uma surra, que é o que você merece. Ele vai te deixar tão acabado, que você vai esquecer do que falou. — Sheila virou de costas e rumou de volta par a cama. Pegou o celular e começou a mexer — Por falar nele, acho que ele está demorando muito. Será que aconteceu alguma? João Paixão precisa chegar antes da Gabi e da Valeska, pois eu quero que ele me veja acabando com a raça daquelas duas de uma vez só.
Minhas pernas tremeram naquele momento.
— Por favor, deixe-as em paz. — implorei.
Sheila retirou uma batatinha do seu kit explosão de colesterol e apontou para mim.
— Pega isso aqui, entrega pro bebê e fica calado. Se você se comportar direitinho, João Paixão e eu te levaremos para o exterior, pra ser nossa baby-sitter — gargalhou — Já pensou, Marcinho, ir à Paris, conhecer a Estátua da Liberdade?
— Burra... — sussurrei, peguei a batatinha e entreguei ao garoto, que se calou.
— Suas amigas têm até meia noite para aparecerem aqui. Iremos “negociar” a sua liberdade.
Após dizer aquilo, Sheila voltou a assistir TV e tomar refrigerante direto da boca da garrafa.

PALAVRAS DE VALESKA SOARES
Isaac e eu continuávamos de campana perto do cativeiro em que Sheila mantinha Márcio QI e Gohan presos. Gabi me ligou e informou que tinha um plano, mas para que desse certo, era necessário que nós continuássemos vigiando o tal cativeiro.
— Talvez seja preciso a gente passar a madrugada aqui.
— Acho que esse Camaro amarelo no meio de uma favela vai chamar atenção. — disse Isaac. — Mas a gente vai precisar contar com a sorte para que ninguém o veja.
O carro de Isaac realmente era bastante indiscreto, todavia nos encontrávamos num ponto um tanto quanto deserto daquela favela, a vários metros de distância do cativeiro, mas o suficiente para que pudéssemos enxergar qualquer movimentação estranha no local. Além disso, contávamos com a possibilidade de Sheila sair para procurar João Paixão, já que com certeza ela não sabia que ele estava morto.
Estávamos com uma grande vantagem.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO
Max arrumou emprestado um furgão, daqueles de vender sorvete e, junto a mim, dirigiu até a Universidade. O tempo corria e eu não sabia como poderíamos conseguir resgatar Márcio e Gohan a salvo.
— É aqui que a gente vai arranjar um coelho? — perguntei. Max estava compenetrado na estrada, passando com o furgão pela parte mais deserta do campus para que ninguém nos visse.
— Você tá muito tensa, Gabi. Vai dar certo, fique calma.
A Universidade ficava muito esquisita à noite. Eu não estava gostando nada, nada de andar com Max — que para mim ainda era um completo desconhecido — em meio aquele lugar escuro e deserto.
Max seguiu com o veículo até o setor do curso de Zootecnia, onde mantinham criações de animais para estudo. Por se tratar de um setor de pesquisa com animais, era um dos cursos mais, digamos “escondidos” da universidade, pois qualquer estresse nos bichos poderia afetar o andamento dos estudos.
— Eu não gosto desse setor — falei — Eles criam os animais, depois matam. Eu morro de pena, principalmente dos porquinhos.
— Você fala isso, mas quando sai daqui depois da aula, vai direto pro Mcdonalds pedir um X-Bacon.
— Para, Max, é diferente!
Chegamos finalmente ao setor de cunicultura — é o setor de criação de coelhos. Eu também não sabia que tinha esse nome até então. E não sabia que tinha gente que criava coelho para consumir a sua carne. Como é que pode? Eles são tão fofos!
Centenas de coelhos, de todos as cores e tamanhos, ficavam presos em gaiolas, não muito espaçosas, que se posicionavam umas em cima das outras. Cada gaiola tinha um compartimento com comida (sementes de girassol) e outro com água.
— Gente, tadinhos! — exclamei.
— Calma, a gente vai soltar todos. E eles não são tão coitadinhos assim, não.
— Até parece, Max.
Após dizer aquilo, abri uma das gaiolas e retirei um coelho dela. Ele começou a me arranhar e tentar pular dos meus braços. E eu só soltei ele quando ele cravou seus dentões no meu braço.
— Eu disse. Agora que você já viu do que esses coelhinhos selvagens são capazes, imagina só quando a sua amiga Sheila conhece-los. — Max abriu um sorriso e, segurando o coelho pelas orelhas, levou-o para dentro do furgão.
Quando tiramos todos os coelhos de dentro das gaiolas e os levamos para o furgão, seguimos em direção ao cativeiro, onde Valeska e Isaac estavam, para darmos continuidade ao nosso plano.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI
— Chega! Desisto! Eu não quero pensar no pior, mas... eu acho que alguma coisa de muito mal aconteceu com o João. — Sheila pousou sua mão gorda em cima do seu seio farto e me olhou. Eu continuava segurando Gohan e o protegendo daquela monstra.
A noite havia caído e não tínhamos mais luz naquele barraco, a não ser pela luz da televisão que estava ligada já há um tempão. Eu pensei mil vezes em aproveitar para fugir com o bebê enquanto Sheila estava distraída, mas eu tinha medo de fazer algo errado e pôr a vida de Gohan a perder. Todavia, eu sentia de algum modo que Gabi já tinha um plano infalível para pôr em prática.
Eu confiava na minha fé.
— O que você vai fazer? — perguntei, suavemente, me afastando. Sheila não respondeu nada.
Checou novamente o celular: nenhum sinal de João Paixão. Abriu a porta do barraco, deu uma observada pelas redondezas e não viu nada. Ela estava realmente preocupada com aquele cara. Será que aquela gorda gostava dele? Será que dentro daquele monte de banhas pulsava um coração? Decidi jogar com os sentimentos dela:
— Acho que ele te abandonou.
Ela arregalou seus olhões para mim.
— Não! Ele jamais faria isso! João Paixão me ama, sempre me amou.
— Um rapaz mais novo, com uma mulher tão... tão... experiente? Acho que o João Paixão não iria querer formar uma família. Sheila, nada contra você. Aliás, você é um amor de pessoa, mas o problema é com ele mesmo. Ele é imaturo.
— Você acha? — Sheila parecia mansa.
O celular dela tocou.
— Alô — disse ela ao atender — Quem? Oi, Gabi! Você e Valeska estão perto daqui? Resolveu vir salvar o seu amiguinho? — pausa — Bom, podemos conversar. Quem sabe não entramos num ... acordo? — após falar a palavra acordo, Sheila sacou o revolver do sutiã. — Ok. Eu espero que você não tenha falado nada à polícia, ou você nunca mais vai poder ver a cara do seu amigonerd. — Beijos, e me esperem aí.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO
Quando terminei de falar com Sheila, desliguei o celular e saí do furgão. Max me deu uma piscadela e desejou boa sorte. Fechei a porta do carro e segui por uma estrada de terra batida até encontrar Valeska, que me esperava, amedrontada.
— Cadê o Isaac? — perguntei.
— Ele está nos observando dali. — apontou. Ele estava num lugar relativamente perto e discreto, mas longe o suficiente para ele não conseguir nos salvar caso Sheila tentasse algo.
E ela tentaria, claro.
Abracei Valeska e esperamos por alguns minutos até avistarmos a gorda vindo vagarosamente o longe, trazendo Gohan num carrinho de bebê bem antigo e Márcio QI com os braços amarrados andando a frente dela.
A única iluminação que aquela estrada deserta tinha à noite era a de um poste, mas era bem precária. Contudo, eu pude ver a face amedrontada do meu amigo enquanto ele se aproximava da gente.
Enquanto isso, Max seguia lentamente com o furgão — repleto de coelhos selvagens — esperando a hora certa para soltá-los em cima daquela baranga sequestradora de pessoas inocentes.
Sheila chegou perto da gente, finalmente. Ela estava a mais ou menos dois metros de mim e de Valeska. Márcio ficou parado e calado, esperando a gorda falar.
— Finalmente nos encontramos, não? Está aqui o que vocês pediram.
Após dizer isso, Sheila empurrou o pobre Márcio QI, de modo que ele caiu perto dos nossos pés. Ele se debatia no chão, tentando se livrar das amarras que prendiam suas mãos. Valeska logo se abaixou e tentou libertá-lo, enquanto eu fiquei fitando aquela maldita gorda, que ainda tinha Gohan sob sua guarda.
— Nós também queremos o Gohan, Sheila. Esse bebê é filho da Lara e ela precisa do filho para se recuperar. Por favor, nos entregue o bebê, vá embora e nos deixe em paz!
Sheila sorriu com um ar vitorioso e tirou Gohan do carrinho de bebê, apoiando-o apenas com o braço esquerdo. Com o direito, sacou seu revólver e apontou para mim.
— Não! Nunca! Jamais! — exclamou. Eu fiquei sem reação, talvez ela atirasse na gente. — Quando João chegar, nós iremos embora, mas com o bebê. Quanto a vocês três... — Sheila observou Valeska e Márcio, que já estava livre das amarras — Eu tenho um plano para as suas vidas.
Eu escutei o clique do gatilho e antes que Sheila pudesse disparar, Valeska falou:
— O João Paixão morreu! Ele levou um tiro na cabeça hoje cedo, quando vocês estavam na casa do Márcio QI.
— Mentira!!! — Sheila atirou para o céu. Gohan começou a chorar. — Vocês querem destruir a minha felicidade, mas não vão conseguir!
— É verdade! — Valeska falou. Seu tom de voz estava macabro. Ela parecia querer deixar a gorda com medo, mas ela estava cada vez mais estressada, isso sim.
Sheila disparou contra Valeska, mas Márcio QI saltou em cima da nossa amiga e caiu com ela no chão. Sheila deu um novo disparo, mas eu voei para cima da gorda e fiz com que ela atirasse novamente para cima, em vez de ferir nossos colegas.
Agora estávamos numa luta frenética, a qual a maior vantagem era dela: Sheila, apenas com uma mão — já que com a outra ela segurava Gohan — resistia, de modo que eu não conseguia fazer com que ela soltasse o revólver. Eu não sabia quanto tempo mais eu poderia aguentar, e não sabia se Gohan poderia continuar em segurança nos braços daquela gorda.
Valeska avançou nas grandes costas daquela mulher e começou a puxar tufos de seus curtos cabelos, enquanto Márcio QI mordia o braço esquerdo dela, fazendo com que ela soltasse Gohan. Todavia, ela ficou com o tal braço livre, usando-o para desferir uma tapa no meu rosto, me jogando para longe e derrubando Valeska — que outrora se encontrava agarrada em suas costas — no chão.
Márcio correu com Gohan o mais rápido que pôde. Ele sabia que estava nos deixando a sós com o maior perigo das nossas vidas, mas se tratando da vida de uma criança, era o máximo que ele poderia fazer.
— Vocês acham que são espertas. Mas eu sou mais.
Valeska e eu estávamos no chão, depois de lutarmos contra Sheila com todas as nossas forças. Nos abraçamos, aterrorizadas. A grande sombra de Sheila tapava a pouca luz que vinha do poste. Um novo clique. Era o nosso fim?
PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI
Enquanto eu corria desesperadamente com Gohan nos meus braços, um cara com um furgão branco parou perto de mim e abriu a porta, pedindo que eu entrasse com o bebê. Eu não sabia quem ele era, mas imaginei que fosse parte do plano da Gabi para nos salvar.
— Segura firme! — disse ele, acelerando.
Nós estávamos perto dali e vimos quando Sheila ameaçava nossas amigas, deitadas no chão, com o seu revólver. O cara do furgão apontou os faróis do veículo na cara da gorda, o que fez com que ela ficasse com a visão ofuscada.
Gabi e Valeska aproveitaram para fugir dali, enquanto o motorista do furgão acionou um botão que fez com que uma porta lateral do veículo abrisse, liberando de dentro do bagageiro vários coelhos.
Os tais coelhos começaram a pular do carro e correrem em direção à Sheila. A gorda, ao ver os animas, largou a arma e começou a gritar. E quanto mais ela gritava, os coelhos — de fato selvagens — a perseguiam.
Ela talvez nunca tivesse corrido tanto na vida dela. Alguns coelhos avençaram na gorda, saltando em cima dela, mordendo todo o seu corpo, de modo que ela gritava. Outros, que vinham ao longe, se aproximaram, a rodeando e impedindo que ela corresse para qualquer lado.
Os coelhos mais novos escalaram o corpo da gorda e juntos a derrubaram no chão. Sheila gritava muito, parecia realmente que os animais estavam querendo tirar a sua vida. Gohan, por sua vez, que observava tudo conosco de dentro do furgão, parou de chorar e começou a rir da cena.
Ele mal sabia que aquela cena era macabra. Eu também estava rindo, mas quando vi os primeiros vestígios de sangue começarem a escorrer a partir daquele monte de coelhos, deduzi que talvez aqueles animais fossem canibais ou algum tipo de mutação maluca.
— Esses coelhos são lá da universidade, do setor de cunicultura. — disse o motorista do furgão.
— Eu... eu não imaginei que eles fossem tão selvagens. — eu não tirava o olho da cena. Já não podíamos mais ver Sheila em meio aquele monte de coelhos e nem mesmo mais ouvir a gorda gritando.
— Talvez eles não simpatizaram com ela.
Ouvimos uma sirene. Era a polícia. O motorista do furgão arrancou com o veículo o mais rápido que pôde, pois talvez ele não quisesse que a polícia nos visse ali.
— Gabriela e Valeska vão ficar bem. Ah, meu nome é Max. — ele sorriu para mim e depois voltamos à estrada.
E Max, Gohan e eu deixamos Sheila na companhia dos coelhos.
Estávamos todos a salvo.
***
Alguns dias depois
Lara finalmente recebeu alta do hospital. Depois do acontecido com Sheila, o sequestro de Gohan, dentre outras coisas, eu não cheguei a vê-la. Talvez por saber que ela estava falando perfeitamente e eu tivesse medo do encanto que fora esses últimos meses se quebrar.
Porém, eu sabia que nós precisávamos conversar.
Cheguei ao hospital, mas preferi esperar do lado de fora. Ela sairia a qualquer momento.
A garota estava acompanhada de Gabriela. A amizade das duas foi fortalecida, talvez devido a todos os fatos que ocorreram conosco durante esses dias. Lara vinha carregando Gohan nos braços. Ele reconhecia que aquela era a sua mãe, e aquilo para mim me emocionou.
Lara, ao me ver, entregou Gohan para Gabi e se encaminhou para a minha direção. Vê-la andando perfeitamente depois de acompanhar toda a sua trajetória, para mim, era uma vitória.
— Oi. — disse ela.
— Como você está? — perguntei. Minhas pernas tremeram. Ela também estava disposta a falar comigo. Talvez algo importante.
— Sabe, Márcio, durante esse tempo, enquanto estive acordada e sem poder falar, eu me senti muito mal. Um sentimento muito ruim mesmo invadiu meu peito e... saber que mesmo depois de eu ter te destratado, naquele dia, você esteve ao meu lado, fez com que eu quisesse muito me recuperar.
— Eu não poderia te deixar morrer. Eu não poderia deixar o Gohan sozinho no mundo.
— Você é uma pessoa boa, Márcio. E eu nunca enxerguei isso. E acho que eu te devo um pedido de desculpas.
— Tudo bem, Lara. Eu estou acostumado com esse tipo de coisa.
Era diferente conversar com ela sabendo que ela poderia falar comigo. Antes, apenas eu falava, mas agora eu poderia ouvi-la.
— Naquele dia, a Sheila mandou eu falar aquelas coisas pra você. Dizer que eu iria para o Rio de Janeiro, ficar com o Douglas e lá seria feliz com ele. Eu só falei aquilo para que você pudesse ir embora e salvar a sua vida. — ela tomou minhas mãos para si — e deu certo. E sabe de uma coisa? Toda essa reviravolta na minha vida fez com que eu enxergasse o mundo de uma visão diferente. Acho que eu nasci de novo e eu queria que você — ela apertou forte as minhas mãos — me ajudasse a começar uma nova vida. Por favor, Márcio, me perdoa?
Eu não falei mais nada. Eu pensei naquelas coisas que as pessoas dizem, que gestos valem mais do que mil palavras, então eu a abracei. Meus braços rodearam sua cintura e ela pousou sua cabeça no meu ombro.
— Eu não preciso te perdoar por nada. Você não teve culpa. — sussurrei.
Lara me apertou forte contra o seu corpo e eu vi naquele momento que era com ela que eu deveria ficar pelo resto da minha vida.


NOVELA ESCRITA POR MÁRCIO GABRIEL
COLABORAÇÃO DE ANA GABRIELA E LUIZ GUSTAVO
DIREÇÃO DE FÉLIX CRÍTICA
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ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO E NÃO TEM NENHUM COMPROMISSO COM A REALIDADE