CAPÍTULO 02
Duas horas depois, a cabeça de Alis parecia estar estourando com a
quantidade de informações que precisava memorizar. No banco de trás da
limusine, as duas recém conhecidas irmãs combinavam os últimos detalhes.
- Certo, vamos revisar mais uma vez, Alis: Seu marido se chama Amilton Brade, mas você o chama de Brade, porque é assim que ele é conhecido no trabalho. Você precisa estar em casa à oito porque é quando ele chega. Ele adora carne-moida com pão... – “Que coisa nojenta”, pensou Liz, repudiando aquele momento fraternal – ....E cerveja. Você começa no trabalho às oito. Almoça na escola todos os dias e leciona artes na terça e na quinta. Seus diários e os planejamentos da aula estão no arquivo da direita... não... esquerda, e a diretora da escola é sua melhor amiga e se chama Ana Maria Koling. Acertei tudo?
- Tudo... incrível. Mas acho que a minha vida é bem mais simples do que a sua – reclamou Alis, olhando para as fotos sobre o seu colo. Parecia que sua irmã estava planejando aquela troca a mais tempo – Não sei se vou me lembrar de todos os nomes.
- É claro que vai, mas eu escrevi atrás de cada foto o nome da pessoa. –
Disse Liz, tirando o bolo de fotos do colo de Alis para colocar na sua bolsa
Prada. Já coloquei no meu celular o seu número e o meu no seu, mas só ligue se
realmente for necessário, entendeu?
Liz tirou o estojo de maquiagem e passou mais uma vez o corretivo na tempora de Alis, onde havia a marca da cicatriz.
- Isso não está muito bem, mas se alguém perguntar, diga que bateu em algum lugar mas já está cicatrizando.
Liz olhou uma ultima vez para a irmã. O vestido sexy que antes usava agora vestia a irmã. Gastou quase todo o corretivo que tinha para cobrir umas manchas roxas numa das pernas. Por fim, de longe, não pareceria muito ruim.
- É melhor você ficar longe das vistas por hoje e quando sair amanhã, não esqueça de usar corretivo nas marcas, está bem? – falou Liz, desejando que Alis não parecesse tão deslocada. – Não se preocupe, eu tenho no meu guarda roupas algumas peças mais discretas que vão fazer você se sentir melhor. O importante agora é subir para seu quarto sem atrair muita atenção. Lembra do que eu disse?
- S-sim... Se alguém me perguntar, eu passei a tarde inteira no Museu de Arte Moderna e o seu quarto é o terceiro depois da escada no segundo piso, certo?
- Correto. – afirmou Liz – Agora escute com atenção. Eu vou descer aqui, na sua casa e você vai para a minha. O motorista se chama Raul, ele é também meu segurança. Ele é de confiança. Sabe do meu plano, quer dizer, da nossa troca... Ele vai deixar você na frente de uma escadaria. Suba e estará no Hal de entrada. Você logo vai ver a escada e só subir e achar seu quarto. Tome um banho, durma tranquila e faça tudo o que eu lhe disse, escutou?
- Sim, vou fazer tudo o que mandar, Liz. – disse Alis e antes que Liz pudesse afastá-la, abraçou-a com carinho. – Eu estou muito feliz por você ter aparecido na minha vida.
- Ora... será bom para nós duas... – disse Liz, e parecendo absolutamente imponente naquela saia longa desajeitada, saiu da limusine e desapareceu no pequeno casebre que pertencia a Brade e no qual Alis havia vivido dez anos de sua vida.
No mesmo instante que Liz desapareceu no seu casebre, o vidro que separava o motorista da cabine do passageiro na limusine, desceu suavemente. Alis assustou-se ao ver, pelo retrovisor, o olhar de um homem desconhecido a contemplá-la.
- Meu nome é Raul, senhora... estou a sua disposição. Devemos ir para a sua casa, agora?
- Você sabe que eu não sou Liz? – perguntou Alis, temerosa.
- Perfeitamente, senhora. Pode contar com minha discrição. Então? Para casa?
- Sim, obrigada.
Quando a limusine voltou a se movimentar, o vidro de separação, tornou a levantar, isolando Alis novamente.
Alis estava nervosa. Nunca, desde que havia se casado, havia passado uma noite sequer longe de Brade. Mal podia acreditar que agora estava numa limusine, indo para uma casa com uma família que logo seria sua. Tinha medo de pensar que tudo aquilo era um sonho e que acordaria ao lado de Brade. Ao mesmo tempo, tinha medo por Liz. Que irmã maravilhosa ela tinha. Tão elegante, tão corajosa, tão cheia de vida. “Ah, meu Deus, eu sabia que o meu destino iria mudar um dia, eu sabia, meu Deus”, pensou Alis, ansiosa.
A limusine parou novamente. Dessa vez, o vidro de separação não desceu, mas escutou uma voz pelo interfone. – Chegamos, senhora!
Alis olhou pela janela e ficou boquiaberta. Pela limusine e pela roupa de Liz, imaginou que ela fosse rica, ainda mais quando disse que era filha dos Eagletons, mas não imaginou que era tão rica.
Abriu a porta ainda fascinada com o que via. Era uma mansão. Um casarão enorme no alto de uma escadaria e no meio de um jardim maravilhoso.
- Meu Deus! – falou Alis, para si mesma, sentindo-se deslocada. Lentamente subiu os degraus. Abaixo da escada vazada, havia um pequeno lago. Mesmo na escuridão no início da noite, podia ver o movimento de peixes ali embaixo e o barulho tranquilizador de um pequeno moinho. Chegou enfim a porta principal que era dupla e lapidada perfazendo o desenho de um dragão. Respirou fundo e abriu a porta.
Alis seguiu por um corredor e viu-se de repente no hall de entrada. Viu
então a escadaria que dava para o segundo piso. A sala era linda toda decorada
com plantas e estatuas neoclássicas. Numa parede, havia um enorme monitor de
TV. No sofá que preenchia o centro do Hall, um homem estava sentado, comendo
pipoca displicentemente.
- Boa noite, mocreia! – falou ele, com a boca cheia.
Alis sorriu nervosamente. Não esperava encontrar ninguém tão cedo. Pensou em subir logo as escadas, mas seria estranho de sua parte, então resolveu enfrentar o primeiro contato. Pelas fotos, Alis identificou aquele homem loiro, de olhos verdes e sardas pelo rosto como Dunga, irmão adotivo de Alis. Tentando em vão assumir a postura de Liz, Alis respondeu:
- Boa noite, Dunga! – falou ela, tentando não gaguejar. Depois encaminhou-se para a escada.
- Ei, chega aí... – falou Dunga, olhando estranho para Alis. – Está dando Esquadrão da Moda!
Alis lembrou-se do que a irmã lhe falara: ir diretamente para o quarto, evitar contato nos primeiros dias.
- Estou um pouco cansada. Vou para o meu quarto dormir. – falou Alis, subindo rapidamente a escada. Por sorte, Dunga não prestou muita atenção nela e voltou a olhar o monitor.
No piso superior, o corredor se abria num grande hall. Ali também havia sofás, puffs e plantas. Escutava vozes, mas não conseguia identificar de onde vinha. Andou bem devagar pelo corredor. O primeiro quarto estava com a porta entreaberta. Alis espiou pela fresta. O aposento era enorme. No centro havia uma cama e sobre ela, um paletó bem dobrado. Internamente, havia uma outra porta que também estava entreaberta e pelo vapor que saía dela, Alis imaginou que havia alguém ali a tomar banho. Seria o quarto do marido de Liz? Do outro lado, quase em frente a porta do quarto que estava entreaberto, havia outra porta, com uma carinha infantil na porta com o nome Lucas Jr. em letras grandes e coloridas. Alis sorriu. Então, ali deveria ser o quarto do seu sobrinho: Lucas Trevor Jr.
Quando chegou a terceira porta, abriu-a e fechou-a atrás de si. Procurou algo que identificasse o quarto de sua irmã, mas não precisou procurar muito. Sobre a escrivaninha, havia diversas fotos, todas da irmã. Apreciando as fotografias, Alis sentiu uma vontade enorme de poder falar com ela, contar e saber tudo o que havia acontecido em suas vidas. Bem... ao menos, a vida da irmã parecia perfeita, como num conto de fadas. Assim imaginava.
Alis olhou em volta, memorizando cada quadrado do quarto. Era tudo muito bonito e organizado e a cama era linda e gigante como a do quarto ao lado. Havia duas portas no seu quarto: uma dava para um banheiro enorme com uma banheira gigante no centro e a outra dava para um outro quarto menor onde havia uma infinidade de peças de roupas, sapatos, vestidos, bijuterias, enfim.
Escolhendo uma camisola rosa e comprida e um roupão marrom também com mangas compridas, resolveu tomar banho. Não resistiu a banheira gigante. Perdeu algum tempo para descobrir como funcionava: havia três torneiras: uma corria água quente, a outra água fria e a outra uma essência perfumada que se espalhava pela água formando bolhas.
Nunca na sua vida havia tomado um banho tão bom. Divertiu-se tanto que foi custoso para ela sair. Quando saiu, viu que todo o corretivo e a base que sua irmã espalhara pela sua perna e pela têmpora havia saído na água. As manchas roxas pelo corpo lembravam-na de seu marido. Tinha medo do que Brade poderia fazer com Liz. Ela parecia uma mulher tão fina e elegante, não tinha certeza se poderia lidar com ele e se sentiria muito culpada se algo acontecesse a ela.
Aquele pensamento intranquilizou-a e ela passou a caminhar ida e volta pelo quarto. Lembrou-se depois da porta de seu sobrinho e sorrindo imaginou que já era tempo de vê-lo.
Abriu a porta do quarto e olhou para ambos os lados. Como não viu ninguém, cruzou o corredor e abriu a porta do quarto do sobrinho. O quarto era lindo: todo enfeitado em cores azuis, com ursinhos a anjinhos espalhados pela parede. No centro do quarto estava o berço e no berço o mais lindo bebê que já vira. Lucas Jr. tinha os olhos verdes, mas os cabelos negros e a cor morena. Provavelmente tinha os olhos do pai, mais muito dos traços da mãe.
Enternecida pelo sobrinho que brincava com um chocalhinho, Alis pegou o bebê no colo e ninando-o cantorolou uma das cantigas que a irmã Ágatha costumava a cantar para ela, quando era criança.
- O que diabos está acontecendo aqui?
Alis virou-se assustada com a voz firme que escutou atrás de si. Sabia quem ele era. Havia visto a foto, havia memorizado cada linha de seu rosto, mas nunca imaginou que ele teria uma presença tão amedrontadora. Entendia agora porque sua irmã precisava de tempo para pensar. Sabia que aquele homem não voltava atrás nas decisões que tomava.
- L-lucas! – falou Alis, tentando controlar o nervosismo. Seu coração parecia querer pular pela boca.
- VANESSA! – falou Lucas, ainda num tom mais alto e segundos depois, por uma porta lateral do quarto do bebê, uma jovem apareceu.
- Seu Lucas, dona Liz. - falou a jovem e ela olhava surpresa e assustada para Alis, como se ela estivesse cometendo algum crime.
- O que faz com o bebê no colo? – perguntou Lucas, com o olhar estreito, fixo em Alis.
Alis engoliu em seco e olhou para o bebê que parecia perfeitamente confortável em seu colo.
- E-eu... eu só queria ver... eu só queria ver meu filho... – falou ela, aproximando ainda mais o bebê de si.
- Que brincadeira é essa, Liz? O que diabos você está querendo desta
vez? – falou Lucas num tom sério e ameaçador.
- Nada, eu não quero nada. – falou ela sem entender direito o comportamento agressivo do marido de sua irmã.
- Vanessa... pegue o bebê, AGORA!
Vanessa, a jovem que parecia ser a babá, tirou o bebê do colo de Liz e colocou-o novamente no berço.
Sem saber direito o que fazer e sentindo-se acuada, Alis caminhou para fora do quarto. Ainda no corredor, escutou a conversa de Lucas com Vanessa.
- Não esqueça de ligar a babá eletrônica, Vanessa. Não confio nem um pouco em deixar Liz perto do bebê.
- Mas ela nunca chega perto, seu Lucas. Não sei porque ela resolveu hoje querer pegar ele no colo...
Aborrecida e confusa, Alis voltou ao seu quarto. Não podia acreditar simplesmente que sua irmã não chegava perto do bebê. Alguma coisa não estava certa. Liz falara do bebê com um grande carinho. E nenhuma mãe quer ficar afastada de seu filho. Ela mesma sentiu uma grande ternura pelo menino, querendo tomá-lo nos braços, niná-lo, fingir, ainda que temporariamente, que ele era seu bebê.
Distraída em pensamento, não percebeu que a porta do seu quarto se abrira e que o Lucas ali estava.
- O que está acontecendo, Liz? – perguntou Lucas, atraindo a atenção de Alis que virou-se assustada. Ficou nervosa com a presença dele ali em seu quarto.
- C-como.... como a-assim? – perguntou ela, confusa.
- Eu te conheço, Liz. Com certeza você está tramando alguma coisa.
- Só porque eu quis pegar o meu filho no colo? – perguntou Alis, aborrecida.
Lucas sorriu, mas parecia irônico.
- O “seu” filho? – falou ele, com um tom ainda mais sério e grave do que antes. – Agora ele é seu filho, Liz? Tudo o que eu quis ouvir nessa vida, nesses seis meses da vida desse menino é que ele é seu filho, mas nunca você sequer quis ouvir falar sobre ele e agora... ele é seu filho, você pega ele no colo e o faz ninar? Fala sério, Liz... fale logo o que está acontecendo.
Alis não sabia o que fazer, mas sabia pelo tom sério de Lucas que ele esperava uma resposta. Ah, que idiotice sua ter saído do quarto já na primeira hora. Era óbvio que ela não poderia fingir para aquele homem tão ameaçador. Estava com tanto medo dele quanto tinha de seu marido. Não sabia nem ao menos como fingir. Sua irmã parecia tão alegre, tão viva, tão generosa. Aquele homem parecia pintar uma Liz completamente diferente: distante e fria. Qual das duas seria a verdadeira?
- E-eu... eu não sei... eu estou me sentindo um pouco estranha e por um momento, eu quis ver o bebê... e... eu... eu não sei... juro que não sei...
Lucas ficou ali olhando seriamente para ela, depois demorou-se em seu corpo e seu cabelo.
- Você está mesmo diferente. – disse ele, aproximando-se dela. – Você perdeu peso e está com olheiras... não parece bem. Você está doente? Quer que eu chame o Dr. Dante?
- Não... não... não é necessário. – falou ela, tensa pela aproximação, quando ele a segurou pela cintura com uma mão e com a outra, tocou a cicatriz na sua têmpora.
- Como é que fez isso? Eu nunca tinha visto isso antes.
- Eu estou bem, bati com a cabeça alguns dias atrás, já está cicatrizando.
- Isso não me parece uma batida simples, Liz, parece-me algo sério, um corte profundo.
- Não é nada... nem dói mais. – Alis segurou a respiração rezando para
que ele se afastasse. Nunca na sua vida esteve tão próxima de outro homem que
não fosse Brade.
Lucas parece ter percebido, pois franziu o cenho ao ver que Liz parecia nervosa e trêmula.
- Por que está tão nervosa, Liz? Será que me odeia tanto assim? Eu ainda sou seu marido, mas não vou tocar em você. Agora, nem mesmo se eu quisesse. Seus rompantes e suas excentricidades começam a me cansar...
Lucas saiu do quarto e Alis pode enfim respirar.
Ainda trêmula, Alis sentou-se sobre a cama, tentando entender o que estava acontecendo. O que estava acontecendo entre sua irmã e ele? E entre ela e o bebê?
Custou a dormir naquela noite, apesar da cama mais do que confortável. O tempo todo ficava pensando na sua irmã e em como ela estaria agora. Brade era tão ameaçador quanto Lucas, mas apesar do tom sério e grave, no fim, Lucas parecia genuinamente preocupado com ela. Achava que ele amava Liz e que só estavam passando por uma fase difícil. Esperava que a irmã tomasse a melhor decisão pensando naquela família que aparentava ter graves problemas.
Durante a noite, escutou um barulhinho estranho. Por conta dos anos em que dormiu ao lado de um homem que a qualquer momento poderia se tornar violento, Alis aprendeu a dormir sempre alerta, atenta a qualquer movimento ou barulho. Depois de uns segundos, lembrou que estava numa mansão, num quarto de sonhos e que o barulhinho era seu sobrinho balbuciando.
Levantou-se. Achou que agora talvez fosse o momento, já que todos pareciam estar dormindo. Abriu a porta do quarto do sobrinho. A luz da babá eletrônica estava ligada. Provavelmente, o outro monitor estaria no quarto da babá. Para abafar o som, Alis colocou uma fralda sobre o buraco do microfone e com um sorriso maroto pegou novamente o bebê no colo. Ele choramingou um pouquinho, mas ela balançou-o até que ele dormisse novamente. Depois sentou-se num sofá, olhando para cada detalhezinho do rosto dele. Que lindinho era seu sobrinho! Sua família... mal podia acreditar.
Ficou com ele no colo quase uma hora e depois, quando sentiu os olhos
pesarem, colocou-o suavemente sobre o berço, retirou a fralda da babá
eletrônica e saiu silenciosamente do quarto.