segunda-feira, 14 de julho de 2014

Duas Faces no Espelho - Capítulo 01



CAPÍTULO 01

Liz apertou o pequeno botão na porta de sua limusine fazendo o vidro escurecido abaixar-se até o ponto em que poderia observar melhor o lado de fora. Um bafo de ar quente impregnou-lhe o ar, mas ela não se importou. Seu sorriso alargou-se, mas não se abriu, retorcendo-se numa careta que misturava graça e sarcasmo. Não podia simplesmente acreditar que aquela figura lá fora, completamente ridícula, era a sua irmã – gêmea!

Liz voltou o olhar para o relatório do detetive particular que ela havia contratado para encontrar a irmã, mas achou que o destino estava rindo dela. Nunca que aquela figura poderia ser sua irmã... tinha a mesma face, isso era óbvio: os mesmos olhos e cabelos negros, mas Liz mantinha a madeixa lisa, enquanto os cabelos daquela mulher caiam em cachos. Liz tinha elegância, graça, sensualidade na sua postura, aquela mulher parecia ter sido resgatada de algum lugar do século XIX: vestia saia e blusa longas e pesadas naquele calor insuportável.

Nem sabia porque estava tão surpresa. As fotos que o detetive lhe enviara no relatório não eram diferentes: parecia que todas as roupas eram iguais, só mudavam as cores: sempre em tons escuros. Como é pode uma mulher de 30 anos, jovem, bela, esbelta vestir-se assim? Era muito estranho. Aquela mulher era ainda mais magra que Liz, que fazia dietas rígidas e duas horas de academia por dia para manter-se sempre desejável. Sorriu. Seu marido ficava à distância, mas precisava continuar linda para seu amante, o terrível Sr. Dante. Liz sorriu novamente para si mesma, lembrando-se da noite passada. Dante era um homem abominável, mas não nas mãos de Liz. Nas mãos de Liz, aquele homem conhecido entre as mulheres como um amante exigente, tornava-se um cordeirinho... Liz tinha suas artimanhas... aprendeu-as com seu irmão de criação, Dunga. Havia tantas coisas que gostava em sua vida, mas Dante e Dunga eram especiais para ela. Sentiria falta deles, sentiria muito, mas não havia outra alternativa. Sua única solução era colocar aquela figura esdrúxula e ridícula no seu lugar e esperar até que tudo estivesse terminado.

Liz olhou mais uma vez para fora, pensando se seu plano daria certo. Sua irmã não era exatamente como ela, mas era um risco que ela precisava tomar. Então, resolveu abrir a porta, colocou os óculos escuros e aproximou-se do pátio da escola, onde sua irmã estava rodeada de adolescentes.

- Professora Alis? – falou Liz, forçando uma simpatia que não fazia parte da sua personalidade.

- Sim, posso ajudar? – falou a garota que tinha a mesma face que Liz. Ela, entretanto, tinha uma pequena cicatriz na têmpora direita (“talvez maquiagem resolva”, pensou Liz).

- Certamente que poderá me ajudar, será que podemos conversar em algum lugar em particular...

- Sim, claro... vamos até a minha sala... – falou Alis, com suavidade.

Quando os jovens se afastaram das duas, Liz escutou uma menina falar : “Viu só aquela mulher, era a cara da professora...!”. “Menina esperta”, pensou Liz, sacou a semelhança na hora. Sua irmã, tão idiota quanto ela pensou que seria, nem havia percebido, talvez por conta dos óculos escuros que eram bem grandes e cobriam grande parte de seu rosto. Mas seus lábios e o queixo bem demarcados denunciavam a semelhança entre elas.

Liz entrou com um certo nojo na sala de Alis. Era repleta de desenhos, cartazes e fotos de jovens. Pelo que Liz havia lido no relatório do detetive, Alis era orientadora escolar durante a manhã e a tarde, lecionava artes em duas turmas. Liz, pelo contrário, detestava crianças.

- Sente-se aqui, por favor. – Alis disse, apontando a uma cadeira diante de sua mesa. – Em que posso ajudá-la? Você é mãe de algum aluno?

- Oh, Deus... claro que não! – respondeu Liz, prontamente. Morreria de vergonha se seu filho estudasse numa escola pública. – O que me traz aqui é um assunto muito mais pessoal a respeito de nós duas!

- Não entendo? – falou Alis, franzindo o cenho. Liz sorriu. Era o mesmo jeito que ela tinha em franzir a testa quando ficava intrigada com alguma coisa.

- Achei que me reconheceria logo, irmã... – disse Liz, sorrindo forçadamente, enquanto tirava os óculos escuros.

Alis arregalou os olhos incrédula. Ali na sua frente, aquela mulher elegante tinha a sua face. Os mesmos olhos, o mesmo formato do rosto, dos lábios. O mesmo sorriso. Entretanto, a mulher era maquiada, tinha um pequeno peirce no nariz, compridos brincos e os cabelos lisos e brilhantes. Usava um vestido tomara-que-caia com saia curta e mostrava as penas bem torneadas. Era alguém tão igual a ela e, ao mesmo tempo, muito diferente. Ficou imaginando se eram tão díspares na personalidade.

- Eu nunca imaginei que encontraria minha irmã gêmea... – falou Alis, depois de muitos segundos.

Dessa vez foi Liz quem franziu o cenho, intrigada pela reação de não-tão-surpresa-assim.

- Como assim? Você sabia que tinha uma irmã gêmea? Você contou isso a alguém? - perguntou Liz, imediatamente. Para que seu plano desse certo era extremamente importante o sigilo dessa informação.

- Não... ninguém sabe que eu tenho uma irmã gêmea... ao menos, eu acho que não comentei isso com ninguém. Mas eu sabia sim. A irmã Ágatha, do orfanato em que eu estive, contou que os registros mencionavam duas irmãs gêmeas, mas ela não sabia o que havia acontecido com você... Hoje em dia, não é possível adotar somente um irmão ou irmã sem o outro, mas acho que na nossa época, isso era possível, eu creio. Ou, talvez deva ter havido algum problema com os nossos registros para nos separarem...

- Bem... – Liz sorriu novamente. – Acho que sim. Eu fui adotada por uma família maravilhosa – mentiu Liz. Sempre detestou sua mãe fraca e seu pai viciado em jogos. Seu irmão era o único por quem tinha algum afeto. – E você? O que aconteceu com você?

- Eu fui adotada também... mas não deu certo...- falou Alis, parecendo esquiva - e eu voltei pro orfanato.

- Ah... que pena! – falou Liz, fingindo-se surpresa. O detetive informou no relatório que adoção de Alis fora conturbada. Ao que parecia, a mãe adotiva era boa e caridosa, mas o pai abusava de Alis quando a mãe não estava. Depois de dois anos sofrendo abusos, uma assistente social descobriu e tirou Alis dos pais adotivos. Eles ainda brigaram na justiça para reavê-la, mas depois disso, Alis não retornou a nenhum lar adotivo. – Então, você resolveu se transformar numa professora...

- É. A irmã Ágatha era uma professora maravilhosa. Ela me ajudou a fazer faculdade. Na verdade, eu fiquei no orfanato, trabalhando como assistente, cuidando das crianças. Depois da faculdade, consegui passar num concurso público e trabalho aqui. Mas não perdi totalmente o contato. Sempre vou aos finais de semana no orfanato, brinco com as crianças, ajudo a irmã Ágatha... faço o que posso...

- Legal! – falou Liz, esforçando-se para não cair na gargalhada. Sua irmã era uma santa... uma maldita santa. Que ironia!

- E você... eu nem sei seu nome... o que você faz... como chegou até mim? – perguntou Alis, totalmente surpresa e alegre.

- Meu nome é Liz... Liz Eagleton Trevor. Eu fui adotada pelos Eagletons, você deve ter ouvido falar deles...

- Ah, bem. Só ouvi falar do Harry Eagleton, o inglês que foi prefeito.

- Então... é meu pai... que Deus o tenha! Um dos homens mais amáveis que conheci.

- Ah.. eu ouvi o noticiário quando ele morreu. Faz dois meses, não é? Deve ter sido duro para você!

- Você não imagina o quanto! – disse Liz, fingindo lágrimas nos olhos. – Eu fico lembrando das vezes em que ele me colocava para dormir, lia histórias... eu ainda fico me perguntando quem seria terrível a ponto de tirar a vida de alguém tão caridoso, tão generoso... ?

- Ah, eu estou me lembrando... ele foi assassinado, não é? – perguntou Alis, preocupada com a irmã.

- Um assalto infeliz. Meu irmão quase foi assassinado junto com ele... eu morreria se o perdesse também. – Isso lá era verdade. Liz sentia um afeto muito grande por Dunga. Se fosse ele o atingido e não seu pai, ela não saberia o que fazer.

- E descobriram os assassinos? – perguntou Alis, curiosa. Sabia um detalhe ou outro dos jornais. Os Eagletons pertenciam a uma das famílias mais antigas, respeitadas e ricas da cidade.

- Não... foi uma equipe profissional. Assaltaram o cofre da casa. Roubaram as minhas jóias e a de mamãe e mais de quinhentos mil em dinheiro. Sabe, pouco me importa o dinheiro, mas não podia imaginar que naquela tarde fatídica, perderia meu pai... – Liz apertou os olhos. Esperava que lágrimas pudesse sair de algum lugar da sua alma. Detestava o pai. Era um fraco idiota. Liz herdaria milhões se ele não tivesse perdido metade da fortuna com um projeto social que não resultou em nada.

- Sinto muito, Liz... muito mesmo.

- Bem, de qualquer forma... eu achei você e quero apresentar você para minha família, quero que sejamos irmãs de verdade.

- Isso seria um grande prazer... – disse Alis, sorrindo graciosamente – Eu sempre sonhei em ter uma família. Isso seria muito importante para mim...

- Ótimo! Isso é ótimo... eu mal posso esperar... mas, na verdade, eu esperava que você pudesse fazer um grande favor para mim antes.

- Um favor? – perguntou Alis, intrigada.

- Sim, bem. Nem sei por onde começar. E estou muito envergonhada só em propor algo assim, mas é algo que me faria muito bem, um alívio para minha alma. – falou Liz, titubeando propositalmente. Tinha dúvidas se aquele era o momento propício. Talvez sua proposta devesse vir depois de alguns dias, mas não podia correr o risco de Alis sair contando por aí que tinha uma irmã gêmea.

- O que é? Pode falar o que quiser... Se eu puder te ajudar, eu não hesitarei...- falou Alis, curiosa.

- Sabe, Alis. Eu sou casada. Já sou casada há três anos com um homem por quem sou apaixonada. E temos um filhinho de seis meses. – falou Liz, escolhendo cuidadosamente as palavras.

- Um filhinho! Então eu sou tia! Meu Deus! Que notícia maravilhosa... que alegria você está me dando hoje... nem imaginei que teria uma irmã e agora um sobrinho!

- Mas não é só isso... – falou Liz, irritada com a interrupção.

- Oh, desculpe... continue...

- A verdade é que a situação com meu marido não está muito bem. Eu o amo, muito. Mas ele tem se distanciado de mim e eu descobri que ele tem uma amante.

- Oh, sinto muito, Liz. – falou Alis, baixinho, para não interromper.

- Eu estou com a minha alma repartida, pois não sei se devo confrontá-lo, se devo abandoná-lo ou se devo aceitar tudo isso.

- Você deveria esclarecer a situação com ele... – opinou Alis, querendo ajudar a irmã que parecia aflita.

- Esse é justamente o problema. Meu marido é muito bom e amável, mas também é teimoso. Tenho medo de enfrentá-lo e ele me deixar depois disso. Eu não sei se quero deixá-lo. Não sei se suporto perder meu marido depois da perda do meu pai. É por isso que eu preciso de um tempo afastada do meu marido e da minha família para pensar e resolver de uma vez por todas. O problema é que não posso me afastar agora. Daqui a três dias, haverá um evento em nossa casa para homenagear meu pai. Minha mãe está em frangalhos, meu irmão também. E ainda há o meu bebê, não posso levá-lo comigo, pois meu marido jamais permitiria e não posso deixá-lo sem ninguém de confiança para cuidar dele. Por isso que pensei que talvez você pudesse ajudar, Alis...

- E-eu... – falou Alis, surpresa. – Mas como?

- Temos o mesmo rosto. Se usarmos as mesmas roupas, tenho certeza de que ninguém notará a diferença. Você poderia ficar na minha casa. Meu marido e eu dormimos em quartos separados há muito tempo. Você cuidaria do meu filho – ele tem uma babá, não se preocupe. Você iria na homenagem do meu pai, daria muito conforto para minha mãe ter minha presença, nesse momento. Você nem precisa dizer ou fazer nada, só aparecer. É tudo o que eu peço...

- Você quer que eu finja ser você? – perguntou Alis, sem saber se estava escutando o que estava. - Quer que eu minta para seu marido e sua família, antes mesmo de conhecê-los.

- Eles nunca saberão, Alis. – Falou Liz, tentando convencê-la. “Maldita santinha do araque”, pensava Liz, lutando para manter aquele rostinho de pobre coitada. – Não seria nenhum sacrifício para você e seria de incrível ajuda para mim. Eu preciso muito de um tempo longe de tudo para pensar e decidir. Por que eu sei que a minha decisão não terá mais volta. Não quero perder meu marido sem antes pensar se é isso mesmo que eu quero, você entende, Alis? É por poucos dias, até o evento, somente. No máximo, uma semana.

- Minha irmã... eu até faria isso por você, mas há uma complicação. Eu sou casada também. E não posso abandonar meu marido.

Liz sorriu internamente. O relatório do Detetive havia escrito umas duas páginas sobre a relação de Alis com o marido, um sujeito chamado Amilton Brade. Não era a toa que Alis vestia-se com saia e blusas longas no ápice do verão. O detetive tirou várias fotos do marido de Alis grudando em seus braços, chutando a sua perna, dando socos no seu estômago. A idiota sofria abusos do marido.

- Eu não me importaria em assumir o seu lugar, Alis. Você não abandonaria seu marido. Eu ficaria lá por ele.

- Não, você não entende. Meu marido... ele é violento e não dormimos em quartos separados, Liz. E ele com certeza vai querer dormir com você, forçá-la, se necessário.

- Ele faz isso com você? – perguntou Liz, fingindo não saber da resposta – Meu Deus, Alis... porque você não o denuncia?

- Eu o denunciei, Liz. Três vezes, já. E as coisas não saíram muito bem. Na última vez, ele me deixou algemada por um mês na cama. Quase perdi meu emprego. Ele é policial. É muito respeitado, já salvou muitas pessoas. Fomos do mesmo orfanato, mas ele foi adotado. Depois de muitos anos, nós nos encontramos, nos apaixonamos e nos casamos e no início ele era um homem maravilhoso. Depois que se tornou policial, começou a ficar irritado, nervoso, briga por qualquer coisa. Quando eu tentei deixá-lo, ele começou a ficar violento e até hoje é assim. Dez anos de casamento, oito anos de tortura, Liz. Eu não desejo isso nem a minha pior inimiga, com certeza, não quero que minha irmã passe pelo que eu tenho passado.

- Ah, irmã... eu sinto muitíssimo por isso, mas... acho que posso lidar com isso. Posso lidar com ele por alguns dias, enquanto você lida com meu marido e minha família.

- Como assim, Liz... eu te disse... ele é violento. Eu tenho muito medo dele e sempre acho que um dia eu possa acordar morta.

- Não se preocupe com isso, Alis. Meu psiquiatra me receitou um remédio que adormece até um elefante e que não tem gosto. Basta misturar meio comprimido na comida ou na bebida que ele dormirá como um anjinho e ainda vai ficar mais calmo e pode ajudá-lo.

- Você acha mesmo? – perguntou Alis, surpresa. Ela mesma nunca tinha pensado em fazer isso antes. Parecia ser uma boa ideia, mas ainda tinha preocupações em deixar sua irmã com seu marido. Ela conhecia Brade e sabia que ele era perigoso.

- Claro que sim, Alis. E vamos trocar nossos celulares. Ao menor sinal de problemas, uma contatará a outra e destrocaremos. E depois que nós destrocarmos, você vai morar comigo, na minha casa. Vamos novamente a Delegacia denunciar seu marido, duvido que eles não ouçam uma Eagleton Trevor.

Alis assentiu com a cabeça, ainda titubeante. Era um plano arriscado o de Liz. E achava injusto ficar fingindo para a família dela que em breve seria também a sua. Mas a simples ideia de poder ter uma família e de poder ficar livre do seu marido era tentadora para ela. Tinha medo, contudo. Se não desse certo, se seu marido descobrisse e se Liz não lhe desse o apoio que agora prometia, então teria piorado ainda mais a sua situação com Brade. Mas tinha esperanças, Alis era pobre e os policiais na Delegacia da mulher pressionaram ela a retirar as queixas contra Brade. Sozinha no mundo, sem ninguém a quem recorrer, Alis resolvera se calar, aceitar a humilhação e a violência calada. Já estava tão acostumada que já não sabia o que era viver sem isso. Talvez, aquele fosse o momento que ela esperara durante toda a vida, o momento em que tudo mudaria, o momento em que deixaria de ser sozinha no mundo e pertenceria a uma família que, enfim, poderia amá-la. Se assumir a identidade da irmã fosse o preço para isso, ela o pagaria...