PALAVRAS
DE MÁRCIO FERRARI.
Valeska e eu
optamos por pedir ajuda quando chegássemos no Rio de Janeiro. Para quem, ainda
não sabíamos. Eu estava carregando sozinho toda a bagagem, inclusive a dela e a
das outras meninas.
— Eu vou processar aquele motorista por ter me deixado
longe das minhas amigas. — dizia Valeska enquanto andávamos na rodoviária para
pegar o ônibus que nos levaria para a Cidade do Rock.
— Você deveria levantar as mãos para os céus e agradecer
a Deus pelo motorista não ter te jogado pra fora do ônibus também.
Principalmente naquela hora que você começou a cantar aquelas músicas de forró.
— falei.
— Forró uma vírgula. Forró antigo, Márcio.
— Não vejo diferença. — opinei. Isso fez com que ela
cantasse bem alto na rodoviária.
— “Eu faço tudo por
você; ponho um anúncio na TV, boto meu coração pra todo mundo ver, porque eu
amo você!” — cantava ela.
— Isso, Valeska, canta Calcinha Preta quando a gente
estiver perto dos fãs de Slipknot.
Você nunca vai sentir tanta adrenalina na sua vida. Agora cala a boca e vamos
encontrar um lugar pra ficar e alguém pra pedir ajuda.
☺
PALAVRAS
DE LARA PACHECO.
Perguntamos o nome do rapaz que nos dava carona. Ele nos
disse para chamarmos de “Anjo”. Estava tudo muito estranho: ele, com seu velho Chevette preto, dirigia muito mal. Logo
descobrimos sua idade: dezessete. Gabi e ele cantavam uma música da nossa banda
favorita, mas eu já estava estressada e só não pedi pra descer porque eu
precisava ligar para o celular da Valeska, já que o nerd do Márcio não usava celular. Eu estava no banco de trás e Gabi
no do passageiro, mexendo no porta-luvas do carro do garoto.
— Sua amiga é muito calada, não? — disse “Anjo” para
Gabi.
— A Lara tá de bode. — respondeu minha adorável amiga.
— Gabriela, porque não coloca no jornal que eu tô
menstruada? Porra, tem que ficar falando sempre!
— Hello,
filhinha! Pra que serve Facebook?
— Não
briguem! — disse “Anjo”. — Eu tô com uma impressão de que conheço vocês de
algum lugar.
—
Impossível. Viemos de Fortaleza. Porém, eu também acho que já te vi antes, já
que tocou no assunto. — respondi. — por que você não nos diz seu nome
verdadeiro?
Anjo
virou a cabeça e olhou para mim, no banco traseiro. Ao olhar nos seus olhos,
verdes, brilhantes, lindos, meu coração bateu mais forte, como nunca havia
batido há quase dez anos. Por Douglas.
— Minha identidade. — ele me entregou. — Agora entende
porque eu não quero falar meu nome, né?
— Josivaldo Aquino Pinto? — li em voz alta. — Isso é brincadeira,
né?
Gabriela começou a rir. Ria aquelas risadas de doer a
barriga. Realmente era um nome bem engraçado. E sacana. Como o sorriso dele.
— Lara, é a mais pura verdade. — Anjo sorriu.
Entreguei-lhe de volta sua identidade.
☺
PALAVRAS
DE GABRIELA CARVALHO.
Quando Lara
finalmente conseguiu falar com Valeska e Márcio, já estávamos quase chegando à
Cidade do Rock. O hotel onde Anjo (ou, segundo sua identidade, Josivaldo)
ficaria, era perto do nosso. Por isso, ganhamos carona até lá. Descemos do Chevette e nos despedimos do rapaz.
— Nos vemos no show do Red Hot, gatinhas. — disse Anjo. — Vocês vão para mais algum show? Katy Perry, Slipknot, System of a Down?
— Filho, eu vou para todos. Tô pagando essa bagaça aqui e
vou aproveitar! — falei.
O cabeludo então nos abraçou, deu um beijo no rosto de
cada uma, entrou no carro e foi para o seu hotel. Lara ficou suspirando por
ele, que eu vi.
— Fecha a boca, Lara. Vai entrar mosca.
— Coitada de você, queridinha. — respondeu Lara. — O que
você quer dizer com isso?
— Ora, “o que” ... Cá, cá, cá... Faz-me rir. — ironizei.
— Só não mostrou as pernas pro “Anjo” porque tava com medo de ele ser um tarado.
— Tá me chamando
de puta? Olha aqui, Gabi, você me respeite!
— Calma, Lara, mulher! Ele era um gatinho mesmo.
Rimos e entramos no hotel. Ele não era lá essas coisas,
mas dava para todos nós, os quatro, dividirmos o mesmo quarto. Márcio QI era
cavalheiro o suficiente para dormir no chão enquanto Valeska, Lara e eu
revezaríamos numa cama de casal.
— Tá vendo, sua jumenta, o que dá ficar fazendo molecagem
dentro do coletivo? — disse Valeska, me batendo, quando nos reencontramos.
— Até parece que você não estava molecando também. —
falei. — mas o que importa é que estamos todos aqui, inteiros, e prontos para
curtir todos os shows.
—
Espero que leve isso para a vida, Gabi. — disse Márcio QI. — E cresça!
— E que você, Márcio QI, rejuvenesça. Parece até minha
avó falando! — retruquei.
☺
PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI.
-
“[...]
Noites de verão e dias de inverno
A
cidade, às vezes, é um inferno
Criei
então um universo onde tudo era perfeito e feito pra nós dois...”
Por
recomendação minha, fiz com que todas as garotas ligassem para seus pais para
dizerem que haviam chegado no Rio sãs e salvas. Faltavam dois dias para o
início do festival e cinco para o dia da apresentação do Red Hot, que seria do sábado para o domingo. Tivemos tempo de sobra
para fazer compras, passear, tirar muitas, muitas fotos (se tratando da Gabi,
tirar fotos para ela era sagrado) além de conhecer o palco e ver o ensaio de
algumas bandas brasileiras, como Capital Inicial.
Lara
passava a maior parte do tempo dormindo ou no celular. Gabi às vezes fazia com
que ela se socializasse mais um pouco, sempre comparando a mim, me chamando de
antissocial e falando que até eu estava saindo.
—
Como assim, Lara? Como assim você não vai ver a apresentação das primeiras
bandas? — perguntou Gabi, no dia em que iniciava o Rock in Rio 2011.
—
Tô com dor de cabeça. Vão vocês três.
Vou ficar de boa.
—
Gabi, não insiste. — disse Valeska. — Não tá vendo que ela não quer ir!
—
Pô, Lara! Olha todo o seu dinheiro indo pro ralo! Você pagou pra ir ao show e
não vai. Como assim? — disse Gabi.
—
Eu que não perco o show do Capital Inicial. — falei.
Fomos ao show, sem a Lara. Curtimos as três primeiras
músicas, juntos, mas depois Gabi e Valeska arranjaram “ficantes”. Fiquei só, de
braços cruzados e cantando “Depois da Meia Noite”.
“[...]
Não quero esquecer das noites viradas
Falando sobre o mundo até a madrugada...”
Alguém apertou a minha bunda. Olhei para trás e não vi
ninguém. Só algumas meninas de catorze ou quinze anos cantando, sem mesmo saber
a letra. Posers!
— Quem de vocês apertou a minha nádega? — perguntei, mas
estávamos muito perto do palco e nenhuma escutou nada.
— O que foi? — uma delas perguntou.
— Uma de vocês apertou a minha nádega e eu quero saber
quem foi!
Elas riam muito e eu não via graça nenhuma. Fui para
longe delas.
☺
PALAVRAS
DE LARA PACHECO.
Naquele momento,
me arrependi por não ter ido ao show. A música da banda Capital Inicial invadia
o meu quarto. Decidi sair do hotel e ficar pelo menos na calçada. Pensei que
talvez pudesse entrar no lugar onde estava havendo o show. Ainda estava com o
ingresso. No meio do caminho, tombei com “Anjo”. Ele estava todo de preto e
fumava um cigarro.
— Olha só, se não é a menina do bode! — exclamou.
— Por favor, Josivaldo Aquino Pinto! — revidei. — nem
estou mais “de bode”.
— Porque não foi ao show? Vi sua amiga Gabi por lá nos
maiores amassos com um conhecido meu.
— Sério? Não acredito. Vaca! — lembrei-me do tal pacto
que fizemos na infância. Acho que ninguém lembrava mais aquilo. Fazia tanto
tempo que ninguém mais tocava no assunto que comecei a achar que tudo aquilo
ficou guardado nas tumbas do passado. — Bom, Anjo, não fui ao show porque
estava com muita dor de cabeça. Passamos o dia passeando e tirando fotos. E
você, por que não ficou lá?
— Não tô no
clima... Por que não vem comigo dar uma
volta, Lara?
“[...]
Por quanto tempo só nós dois?
Por quanto tempo, só nos dois?”
Fomos até uma espécie de estacionamento e tomamos o seu
bom e velho Chevettepreto. O carro
estava imundo, com pacotes de salgadinhos e garrafas de vinho barato por todos
os lados.
— Desculpa o estado da caranga. Fizemos uma festinha
aqui.
— Nossa Senhora! —
pus a mão no nariz. — Você deve trazer um monte de vagabundas pra cá, não é?
Melhor eu ir, não quero ser mais uma.
Quando eu pus a mão na porta do carro para abri-la, Anjo
foi mais rápido e a travou novamente. Seu corpo ficou em cima do meu por alguns
instantes. Meu coração acelerou, como há dez anos atrás. De novo.
— Por favor. Você tá me deixando com medo!
— Olha bem pro meu rosto. Diz que não me reconhece! — Ele
forçou meu rosto para que eu olhasse para o seu.
Frio na barriga. Borboletas idiotas incomodando novamente
meu estômago. Era ele?
— Douglas Loreto? — perguntei.
— Eu sabia que você nunca se esqueceria de mim! — ele me
abraçou forte. Mais frio na barriga. Aquilo só poderia ser um sonho.
— Não pode ser você. Eu vi sua identidade!
— Você achou mesmo que meu nome era aquele? Se fosse eu
já teria me matado. — Douglas (achava então que era esse mesmo seu nome)
sorriu. — Como você acha que eu saio por aí dirigindo um carro e comprando um
monte de cigarros e bebidas, mesmo sendo menor de idade?
— Douglas... eca! Não pode ser você! O Douglas de nove
anos atrás era um menino meigo, puro... Você é um bêbado cabeludo!
— Você sabe que eu nunca fui nem meigo, nem puro, Lara!
— Eu vou destravar a porta desse carro e sair. Se você
tentar alguma coisa eu grito bem alto e você se fode!
Finalmente consegui sair daquele carro imundo. Não queria
acreditar, mas o “Anjo” era realmente Douglas!
“[...]
Depois da meia noite, nós acendemos
as
luzes da cidade,
Nos
abraçamos e ficamos juntos
Até
nascer o sol...”