IV
Eu
gostaria muitíssimo de descrever tudo o que me aconteceu até o dia 20 de
dezembro. Mas se você ainda não percebeu estamos chegando ao fim. Não seria
muito proveitoso eu dizer que fiquei com o que algumas pessoas chamam de
borboletas no estômago. Que escrevi poeminhas para um certo asqueroso. Que
conversávamos todo dia pelo msn (aliás, ele estava amando o livro). Que o lance
do sorvete foi muito legal. Enfim, coisas desse tipo que eu tenho certeza que
em qualquer outra história você encontrará bem detalhado. E o que esse 20 de
Dezembro tem de especial? Foi o dia que Henrique perguntou se eu queria, de
acordo com as palavras dele, “tipo assim ficar meio que junto...assim o povo
chama de namorar” . Eu aceitei, ok, eu estava apaixonada. E foi tudo ótimo. Nos
divertimos muito, ficamos acima de tudo bons amigos. Ele até foi falar com os
meus pais, o que foi cômico já que ele, asqueroso desastrado que é, acabou
quebrando a porcelana de estimação da minha mãe. Primeiro ela deu um grito e
ficou verde de raiva, depois disso que estava tudo bem (mas só disse isso por
educação). Ah! A Tâmara também pediu o Jorge em namoro.Mas ele não quis.
Acontece. Ele disse que eles dois eram apenas bons amigos e que ele gostava
mesmo de uma tal de Camila, uma das garotas cérebro de chiclete. E claro que a
Tâmara ficou arrasada. Eu poderia tentar consolá-la, e tentei, mas nada do que
eu dissesse iria soar como realmente sincero. Pelo menos foi o que eu senti. Ao
mesmo tempo que eu dizia: “Não liga para ele Tâm”. Eu sabia que ela imaginava:”
Você diz isso porque está feliz com o seu” . Foi aí que decidi manter meu
consolo restrito a abraços, conversas sobre qualquer assunto que não fosse esse
e , é claro, chocolate. Você já quis consolar alguém e não teve como fazê-lo de
fato? Ou o que é pior, você já quis ser consolada e não apareceu um braço que
envolvesse seus ombros, não de maneira efetiva? Pois era mais ou menos essa a
situação.
Eu
estava , literalmente, domada e dominada pelo que o senso comum chama de
felicidade. Nunca pensei que uma garota como eu, não vamos ser hipócritas, eu
não tenho o físico ideal, pudesse encontrar um cara como o Henrique. Eu sou só
uma pessoa normal, talvez como você, eu tenho meus defeitos e qualidades, meus
segredos, meus medos e minhas vergonhas. Mesmo assim, o que eu quero é
praticamente igual ao que aquela garota da última cadeira da terceira fila
quer. Apesar dela ser o oposto de mim, mesmo ela tendo um corpo de modelo e ter
uma lista de casos, ficantes, peguetes e afins maior do que a minha lista de livros
já lidos. Nós queremos nos sentir completas. E não, isso não significa ter um
namorado, isso significa estar bem. O modo como se alcança esse bem estar é
pessoal, individual. O fato é que a felicidade é um processo efêmero,
infelizmente você deve estar pensando. Pois eu responderei: Felizmente. Assim
podemos valorizá-la o suficiente. Por que temos medo de perder a vida? Porque
temos consciência que se há um início a um fim, totalmente distante de nosso
controle. O “estar feliz” então eu resumo assim, imagine um dia de verão, 40ºC
, você está com muito calor. Agora olhe para a frente, vê aquela piscina com
água geladinha? Vá! Corra e pule. Você salta da borda para o nada e vai caindo
em direção a muitos litros de alívio e refrescância. Sinta cada gota d’água
acariciando seu corpo. É como um mutirão de beijos em cada centímetro disso que
nós gostamos de chamar de: você.
O
fim: Agora é a passagem, num momento você está entrando com tudo na água e
depois você está se afogando, seu peso puxa para baixo, e eu sinto muito, mas
não a nada a ser feito quanto a isso. Você não pode subir antes de descer
completamente. O ar já começa a faltar nos seus pulmões, uma alfinetada de
desespero chega a alguns lugares do seu corpo.Seu pé toca no chão e você dá
impulso para cima, seu braços ajudam o movimento. Chega à superfície e inspira
a maior quantidade de ar que você pode, alívio de novo. E assim o ciclo
continua.
É
claro que algumas pessoas jamais voltaram à superfície. É claro também que há
aqueles que jamais terão coragem de pular e ficaram sempre a analisar a
situação dos que estão na água, inseguros permanecem no calor sem saber
realmente se pular é bom ou ruim. Bom ou ruim.Nada disso, eu já disse e repito
o mundo é uma mistura. Eu queria muito encerrar o que tenho a lhe dizer aqui.
Mas não posso, tenho que manter meu pacto com a verdade. E não vou me corromper
em troca de um felizes para sempre.
(...)
Para sempre? Isso existe por acaso? Talvez, talvez. Esse negócio de “acabou” é muito relativo também. Aliás, fim é algo relativo. Essa história por exemplo, talvez ela acabe aqui, mas se por acaso você conseguiu ficar com algo dela, uma vírgula que seja, então esse não é o fim. Na minha opinião, que é humilde e não vale muito, eu não acredito em fim. Nem em eternidade. O que pode parecer paradoxal. Não é.
Eu acredito num ciclo, numa troca de energia...Está ficando
filosófico de mais, é melhor parar por aqui. Vamos então para o que uma
história normal chamaria de fim:
Em meados de Janeiro, não me pergunte o dia, por acaso isso
importa? Você iria lembrar da data se eu lhe dissesse, por acaso? Você
guardaria com você ou não passariam de números idiotas a passar pelos seus
olhos? Então. Eu sempre fui meio desastrada sabe...Descoordenada. Não que tenha
acontecido por essa razão, não.Aconteceu porque tinha que acontecer. Eu poderia
fazer um mega suspense e dizer o que ocorreu no “fim”. Mas você já deve ter
percebido que eu não sou sensacionalista e que não estou aqui para agradar quem
quer que seja. Os fatos....é disso que eu falo. E lá vai o fato: Eu morri. Fui
morta, enfim, já não importa.
Agora que eu estraguei a surpresa vamos falar mais sobre
isso. Se isso não está sendo do jeitinho que você sonhou, sinto muito, em algum
momento eu disse que seria? Você por acaso acha que eu sonhei em morrer quando
finalmente estava dando certo?
Desculpe, estou meio grosseira hoje. Mal humor de defunta,
sabe como é. A morte tem dessas coisas. Aos fatos:
Eu simplesmente ia para a sorveteria, que você já conhece de
outros comentários feitos aqui, nesse momento um carro com seu motorista bêbado
(eram 4 horas da tarde mas parece que ia ocorrer uma festa,algumas pessoas
começaram a beber cedo....).O carinha que dirigia não me viu ou nem chegou a
tentar me ver, o veículo estava em alta velocidade, eu bati a cabeça com muita
força foi o que disseram. O Henrique já estava na sorveteria, do outro lado da
rua. Alguns metros e eu estaria tomando sorvete de menta com pedacinhos
falantes de chocolate agora. Se eu tivesse saído de casa mais cedo ou mais tarde.
Se. Se.Se. Isso com certeza não existe. O fato é que meu corpo foi atirado a
alguns metros de distância, eu já estava morta. O meu asqueroso favorito até
correu atordoado em minha direção, engraçado eu juro que ouvi ele pedindo que
eu acordasse, me chacoalhando como se eu fosse uma boneca. Que meloso, isso já
está parecendo um filminho água com açúcar, vai ver a vida tem um pouquinho de
cada gênero.Poderia estar tocando aquela música da Laura Pausini, Vivimi.
É você sabe, não estava...mas não custa nada você fazer isso por mim custa?
Vamos lá meus últimos pedidos. Ouça só essa canção, é tão bonita, ouça por mim,
ouça agora. E imagine. Imagine o Henrique chorando porque eu não acordei. Seria
muito egoísmo de minha parte dizer que fiquei feliz por ele ter chorado quando
eu não abri os olhos? Gostei de perceber quão importante eu era para ele.
Ligaram para a ambulância, eu e você sabemos que foi em vão, mas eles não
sabiam. Meus pais chegaram. Isso me doeu o coração, sério. Minha mãe chorou de
um jeito, foi a coisa mais triste que eu já vi na vida (ou na morte).
Ela foi me tocando como se recusasse a acreditar que eu não
reagiria. Meu pai tentou ser racional, como sempre, mas não conseguiu, não
dessa vez, ele tentava falar comigo, me dizia que ia dar tudo certo, que eu
ficaria bem. Não vou dizer que estou mal. Lembra do lance da mistura?! Os
médicos vieram, a essa altura do campeonato muita gente já olhava o cadáver
estendido na rua. Não demorou muito para eles perceberem que eu não iria
voltar. Vou pular o velório, dá para ser? É que seria muito chato e depressivo.
Todo aquele chororô. Ai não, eu e você definitivamente não precisamos disso.
(...)
Eu vou falar um pouquinho do que foi acontecendo, mas eu
poderia antes fazer outro pedido? Sim, outra música, é que eu estou musical
esses dias. A morte pode ser meio entediante e eu acabei me apegando a algumas
canções, espero que você entenda. Então coloque aquela da Adele,Someone like
you, e vamos aos pormenores.
Meus pais demoraram muito para deixar a vida seguir. Não sei
dizer se hoje eles já conseguiram retomar a rotina ou se apenas esperam a
morte, o que me deixa triste só em pensar. Para meus amigos as coisas foram
mais fáceis com o tempo. Acho que você gostaria de saber que o Jorge se formou
em ciências da computação e casou com aquela tal de Camila, foi traído inúmeras
vezes o que gerou o divórcio. Tâmara é médica, uma excelente oncologista. Num
festa de réveillon os dois se encontraram, hoje eles namoram. Estão felizes. O
Jorge na verdade não sabe ainda, mas hoje a Tâm vai dizer que está grávida de
umas 2 semanas. Pedro Rômulo se tornou um empresário de sucesso. Deixa eu ver
se falta mais alguém....O que? Ah, eu sei o que você quer saber, ou melhor
sobre quem.Um tal asqueroso com gosto de menta com pedacinhos de chocolate,
confere?
Henrique se formou em Direito , mas arrisca como escritor
quando dá tempo. Mora com uma colega de faculdade, muito simpática por sinal,
não o critique, eu o apoiaria se pudesse. Ele seguiu com a vida dele, o que eu
julguei ser o certo. Claro que quando se vê alguém que você gosta morrer não é
uma experiência fácil de ser esquecida. Ele não me esqueceu. Aliás, eu já disse
que ele tem 2 filhos? Um menino de 8 anos e uma menina de 4, uma pestinha essa
garotinha, tem cada resposta....Chama-se Luíza Helena, veja só. No
começo eu achei de mau gosto, onde já seu viu uma menininha tão cheia de vida
com um nome de defunta?! E para ele seria como um cutucar numa ferida ainda
aberta. Mas o asqueroso é muito mais sensível do que eu, ele acabou se curando
com essa sincera homenagem, e confesso, depois que eu percebi que a meu nome
era chamado de maneira carinhosa e não de forma triste, acabei me sentindo
honrada.
Talvez você esteja pensando assim:” OK, está tudo muito
bom, tudo muito bem, mas essa história era para falar de realidade, e onde já
se viu morta escrever?” . Eu poderia lhe responder, mas não vou. Não
respondo justamente pelo compromisso com a verdade. Como assim?
Ora, por acaso você tem todas as respostas para suas perguntas nessa vida? Ou
você têm mais lacunas do que soluções para preenchê-las? Foi o que eu pensei. O
que é isso se não um grande enigma? Um quebra cabeça que a graça é justamente
tentar resolver sabendo de início que não se vai conseguir. Imagine um jogo de
xadrez. Você gosta de xadrez ? Pois deveria. Agora olhe para o seu adversário,
ele é infinitamente melhor que você, seja realista, você vai perder. Certo,
certo, pode ser que você vença, vamos desprezar essa possibilidade para ficar
mais fácil de entender? Como num quesito de física que se despreza a gravidade,
não para ficar irreal , mas para ficar melhor sua compreensão. Então começa o
jogo. Seus movimentos são simplórios. Em poucas jogadas você recebe um xeque
mate. E lá está você jogando de novo, só pelo prazer de tentar.
Outro exemplo, pode ser? Video games. Alguns jogos são
difíceis de mais para serem zerados, mas você joga muitas vezes,
compulsivamente, até acreditando que “dessa vez vai”. Não vai, e no fundo você
já sabia. Vai ver a graça não é conseguir as respostas, e sim seguir tentando.
Eu espero que a minha história (que não acabou) tenha feito
você refletir, o que parece pieguice. Mas quem não ama coisas piegas? Muitas
vezes, até a maioria eu arrisco dizer, precisamos ter os pés bem ficados ao
chão. Voar pode ser perigoso, podemos nos machucar. Todavia, perceba que eu não
disse para você cortar suas asas. Nas vezes que sobraram... Voe! Sonhe mesmo,
sonhe deliberadamente e talvez se frustre. Mas você tentou. Eu queria tanto que
você entendesse. A partir do momento que você decide lutar a derrota é uma
possibilidade assim como a vitória. E não pense que perder significa fracasso.
Perder é chato. Aí você levanta sua cabeça, enxuga qualquer vestígio de lágrima
ou suor que por ventura banhem seu rosto, erga se! E comece a lutar de novo.
E eu não vou dizer adeus, não me interprete mal, aí vai meu até
logo. E a minha música póstuma favorita:
“Mas é claro
que o Sol vai voltar amanhã, mais uma vez (...) Escuridão já vi pior(...)
Espera que o Sol já vem.
Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar num
sonho que se tem ou que seus planos nunca vão dar certo ou que você nunca vai
ser alguém. Tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar. Se
você quiser alguém em quem confiar... Confie em si mesmo”
FIM