EPISÓDIO UM
"SILAS MERYLNN"
Ela estava no
lago se banhando enquanto eu a observava de longe. Era o ano de 1952, e nós não
tínhamos sequer a malícia que as crianças de hoje em dia têm. Ela enchia as
duas mãos com água e limpava seu rosto branco como a neve, seus olhos azuis combinavam
com a cor da água e dava àquilo tudo um ar de tranqüilidade.
Eu estava atrás
do arbusto, e senti uma leve pulsação no meu baixo ventre, mas ignorei esta
sensação no minuto que ouvi o barulho de botinas descendo a mata. Escondi-me
mais adentro da floresta, porém ainda conseguia ver Geneviéve recolhendo suas
roupas e se secando com um pano bordado que eu dei para ela em seu aniversário
ano passado.
O pai de
Geneviéve era um chefe do exército, quase não parava em casa, mas sempre que
aparecia causava problemas por conta de seu excesso de bebedeira ou seus surtos
de raiva. Constantemente eu ouvia o barulho da mão dele em contato com o corpo
da filha, fazendo-a gritar de uma dor sufocante. Nunca pude fazer nada a
respeito.
Durante
aproximadamente mais seis anos, isso se repetiu várias e várias vezes. Eu
morava com meu irmão mais velho, Hector. Nós os Merylnn temos histórico de
trabalhar nas minas, próximo aos trilhos do trem. Numa madrugada de
quinta-feira, Hector e eu colocamos nossos macacões e fomos trabalhar. O
caminho era longo, atravessávamos uma igreja, um cemitério e várias casas.
Sempre exatamente as 05 e 17 da manhã, ouvíamos Geneviéve gritando porque o pai
reclamou do café mal feito ou simplesmente por estar bêbado mesmo.
— Não aguento
mais ouvir esta menina sofrer. Qualquer dia faço alguma coisa.
— Não seja tolo
Silas, você sabe muito bem que não tem força suficiente para parar um homem nos
40 anos.
— Talvez você
esteja certo. Mas eu não consigo viver imaginando a dor daquela menina.
— Olha Silas, o
que você tem que fazer é baixar a cabeça e aceitar isso. Algumas famílias são
desajustadas. Não quero ver você morrendo igual nosso pai morreu.
Abaixo a cabeça.
Hector nunca fala sobre o nosso pai, Giuseppe, pois ele morreu numa briga de
bar com o pai de Geneviéve, levou um tiro.
Chegamos ás
minas.
Cumprimento
alguns camaradas do meu trabalho e vou direto aos fundos da mina, pois lá é o
meu setor. Aqui tudo é mais escuro e é mais abafado, então é normal que vez ou
outra, os caras aqui trabalhem sem macacão por conta do calor excessivo, mas
ninguém liga mesmo contanto que nós façamos o nosso trabalho.
Horas se passam
de trabalho árduo, até que o barulho do trem indica que podemos ir embora. Já
são quase oito da noite e eu não comi nada o dia todo exceto por um pão que eu
dividi com Hector. Passamos o caminho de volta inteiro quando uma névoa cobre o
caminho. De repente, não vejo mais Hector, não vejo mais nada.
A névoa se
dissipa.
Não consigo me
mexer.
Sinto uma
mordida no meu pescoço e meu sangue sendo drenado numa velocidade
impressionante. Estou quase sem forças, e de repente, sinto meu olho arder.
Ando por alguns
metros coçando os olhos até cair num buraco. Eu estou no cemitério e acabei de
cair em uma cova aberta. Bati minha cabeça no impacto e quebrei o meu pescoço.
Acordo dias
depois.
Saio da cova
batendo as mãos no meu macacão para parecer menos sujo. Está de noite e não
vejo ninguém na rua. Não há névoa, não há nada. Decido voltar para casa.
Passando pela
casa de Geneviéve, vi-a sentada no batente da porta, segurando o pano branco
que eu lhe dei para estancar o sangue de uma ferida. Meus sentidos são
atiçados. Uma onda de fúria toma conta de mim e eu avanço em cima dela. Meus
dentes cravados em seu pescoço, sugando cada gota do seu sangue numa velocidade
incontrolável. Tem gosto bom e eu não tenho vontade nenhuma de parar, até que o
corpo dela torna-se mole. Não há mais sangue.
Geneviéve está
morta.
Solto seu corpo
no chão e o observo com a minha boca cheia de sangue. Ao virar, me deparo com
Hector na esquina, me olhando como se eu não fosse eu. E provavelmente, não
sou.
Chegamos em
casa.
Hector bate a
porta com toda a força e se tivéssemos vizinhos, todos teriam acordado. Ele
grita comigo com uma expressão no rosto pior que todas que eu já vi.
— Você não
percebe o que fez?! Você matou-a! – Hector grita.
— Eu não sei o
que aconteceu... – Respondo, timidamente.
— Eu não me
importo. Eu vou consertar isso e até lá, você não sai de casa!
Dormi no chão
frio aquela noite.
O sol começa a
raiar e minha pele começa a queimar incontroladamente, grito de dor por causa
do susto e Hector corre para ver o que aconteceu. Minha pele queimou, mas está
se curando. Isto é impossível.
— Como...
— Silas,
sente-se.
Sento no canto
da sala, onde o sol não bate.
— Acharam o corpo
dela mais cedo hoje, e estão achando que foi um vampiro que a matou. No
princípio achei loucura, mas não era você ontem a noite, e hoje você queimou
sua pele no sol e ela se reconstituiu muito rápido. Você é um vampiro.
A ideia toda
parece absurda para mim.
— Eu vou para as
minas e aviso que você pegou lepra. Ninguém vai contestar isso.
Hector sai pela
porta da frente e eu passo o dia em casa ouvindo o rádio até alguém bate na
porta. É um dos vendedores que vem habitualmente aqui, é o Morthy.
— Olá Silas.
— Entre. – Digo,
e depois fecho a porta rapidamente.
— Eu sei que
você é um vampiro. – Morthy fala.
— Você bebeu?
— Não seja tolo,
quem te transformou foi o próprio Conde Drácula. Eu ordenei isso. Eu estou
organizando uma coisa muito grande, e vou precisar da sua ajuda. Você vem
comigo ou não?
— O que eu ganho
em troca?
— Por hora,
nada. Mas no tempo certo, eu poderei reviver um ente querido seu.
— Certo. Quando
e onde?
— Sabia que era
um homem esperto. Encontre-me na frente do cemitério, à meia noite.
O relógio marca
nove da noite. Ouço uma gritaria na rua. O pai de Geneviéve está caçando o
assassino da filha dela. Abro a porta e uma arma é apontada para mim. Eu sei
que posso me curar, mas fico imóvel.
— Parem! – Ouço
a voz de Hector no meio da multidão.
— Ele não é o
vampiro, eu sou. Eu matei a sua filha e quer saber mais? Eu acho que ela ficou
agradecida de parar de sofrer. Tudo o que você fazia era bater nela até ela
sangrar. Eu tirei todo o sangue dela de seu corpo até não sobrar mais e quer
saber? Eu faria de novo, porque eu gostei.
Ouço o barulho
de um tiro. Corro e consigo recolher o corpo de Hector no chão. Ele me olha com
os olhos brilhosos e chorosos, o sangue saindo de seu peito muito rápido. Antes
que ele possa dizer qualquer coisa, ele morre.
Minha fúria
volta a atacar. Corro em direção ao pai de Geneviéve e ele me dá três tiros no
ombro, nenhum deles me para. Quebro o seu pescoço e deixo o corpo dele no chão.
Pego a sua arma e mato todos que estavam ali perto.
Só restou uma
pessoa. Uma criancinha. A irmã de Geneviéve, Penelope. Aproximo-me dela para me
despedir, quando vejo Morthy andando em direção ao cemitério.
— Você pode vir
comigo. Se você ficar, vão achar que foi você que fez isso. Você quer vir
comigo?
Penelope acena
que sim com a cabeça. Pego o corpo de Hector e levo-o nos braços enquanto
Penelope me acompanha. Andamos uns dois minutos quando encontramos com Morthy.
Despejo o corpo
de Hector na cova e tampo-a com a areia que estava do lado. É horrível quando
literalmente, você tem que enterrar um parente. Eu não posso deixar essa
menininha sozinha no mundo, eu matei sua irmã e seu pai.
— O que é isso?
– Morthy pergunta.
— É a Penelope,
ela vai conosco.
— Ela não pode
vir.
— Mas...
— Silas se você
insistir nessa ideia eu mesmo mato a menina.
— Nós deixaremos
ela num orfanato aqui perto, mas ela não pode ficar sozinha aqui, será
estuprada com certeza.
Morthy pega uma
faca, corta meu pulso e pinga meu sangue nos olhos da menina, em seguida,
quebra o seu pescoço.
— Assim que ela
acordar, ela será uma vampira e terá toda a força do mundo para sobreviver
sozinha. Se quiser sobreviver, terá que fazer isso sem sentir o mínimo de
remoço. Você vem ou não?
Morthy bate um
cajado no chão e uma fumaça negra nos teletransporta dali.
— Bem vindo ao
meu time, Silas Merylnn.