Capítulo 26
8 meses depois...
Instituto Psiquiátrico “Santa Luzia”:
- E então?
Alis levantou o rosto para encarar os inquisidores olhos azuis de Dr.
Robert Sheldon.
- Qual é mesmo a pergunta? – Alis disfarçou. Precisava de tempo para
pensar.
- Hum... Alis, Alis. Você sabe qual é a pergunta e não quero que use de
subterfúgios. A pergunta é: por que decidiu mais uma vez não recebê-lo? Achei
que você já havia decidido que aceitaria a visita de Lucas.
- Não sei ao certo... – respondeu ela, querendo que Dr. Robert encerrasse aquele assunto.
- Você recebeu sua amiga Ana Maria e vem recebendo constantemente as
visitas de Ir. Agatha. Até de sua irmã já recebeu visita. Por que justo Lucas,
você não quer receber?
Alis perscrutou o próprio coração. Não era nada claro para ela a razão e
tinha dificuldades em expor o que sentia.
- Eu... eu tenho medo. – respondeu ela, por fim. Parecia a melhor
resposta.
O psiquiatra, contudo, não parecia satisfeito. Franziu o cenho por um segundo, mas depois sorriu.
- Do que?
Lá vinha ele com aquelas perguntas que não tinham respostas.
- Já conversamos sobre isso... você sabe o que é, não é? – falou ele, desafiando-a. E Alis sabia que era um desafio, pois sempre que ele se intrigava ou a desafiava, Dr. Robert costumava tirar os óculos quadrados e depositá-los sobre a mesa, exatamente como agora.
- Mecanismos de defesa... – respondeu Alis, prontamente. Na teoria era
fácil saber exatamente o que era, o que não indicava uma prática aceitável.
- Ah, bom! Fez o dever de casa! – falou o doutor, de bom humor.
- Já terminei o último livro. Devo começar o outro hoje – falou ela,
animada com a possibilidade de mudar de assunto, ao menos, temporariamente.
- E o que achou? – perguntou ele, juntando as mãos sobre a escrivaninha
como se fosse rezar.
- O senhor tinha razão: eu me vi espelhada nos estudos de caso e,
depois, nas descrições do transtorno. – admitiu Alis. De fato, o livro que o
Dr. Robert lhe dera foi muito revelador.
- E sabe para que eu lhe dei o livro? – perguntou Dr. Robert, novamente
a desafiando.
Alis pensou um segundo antes de responder.
- Para que eu me compreendesse melhor?
- Também! – falou ele, com aquele jeito calmo e brincalhão. Arregalava
os olhos e Alis tinha a certeza de que agora ele a direcionava como bem queria
– Você é uma mulher inteligente. Eu não saio por aí, dando livros de psicologia
e psiquiatria para meus pacientes. Mas eu sabia que você compreenderia melhor
algumas questões a respeito de si mesma. Mas não foi esse o meu principal
motivo.
- Então, para que? – perguntou Alis, curiosa.
- Para que acreditasse no meu diagnóstico, Alis!
Alis franziu o cenho sem entender direito onde ele queria chegar.
- Você não é uma psicopata, nem uma esquizofrênica, nem irá matar pessoas por aí, totalmente descontrolada. Você tem um transtorno, sim, mas o seu transtorno não faz de você uma assassina.
- Mas eu matei Brade, Dr. E matei porque quis... fria e calculadamente.
- Eu sei! Você já me disse isso muitas vezes! Mas não é assim que as
coisas procedem em nosso cérebro. Você foi ameaçada por ele tantas vezes em
situações muito piores da que se encontrava. Então, porque só naquele momento,
decidiu tirar a vida dele, depois que ele já havia sido desarmado?
- Nós já conversamos sobre isso! – reclamou ela. Lembrar daquele dia,
ainda a perturbava demais.
- E o que você entendeu, Alis? Fale, por favor... embora seja
desagradável para você lembrar.
Alis olhou pela janela. O som dos pássaros no pátio externo do instituto
parecia chamar por ela. Gostaria de estar lá fora lendo um bom livro à sombra
do salgueiro do que estar ali. Mas sabia que essas conversas com o Dr. Robert a
ajudavam e muito.
- Por que... por que havia pessoas que eu amava em perigo. E eu
considerei Brade uma ameaça e o aniquilei.
- Exatamente! Você não agiu de maneira dolosa, Alis. Não o mataria em
qualquer outra ocasião. Você não é uma assassina. Não é uma mulher má. É
somente uma mulher que passou por muitas dificuldades e atribulações que
causaram o transtorno que você tem.
- Transtorno da Personalidade Esquiva, não é? – perguntou Alis, tentando
lembrar a descrição do livro que o Dr. Robert lhe emprestara – Eu tenho medo de
contato social, é isso?
- É mais do que isso: você quer evitar a todo custo as situações que
desencadeiam ansiedade e tensão. Você quer se proteger, por isso os mecanismos
de proteção, porque acha que vai sofrer. E agora eu retorno a pergunta, Alis:
porque você está evitando receber a visita de Lucas?
Alis esfregou as mãos nervosamente. Já o conhecia nesses oito meses de
tratamento. E sabia que o Dr. Robert nunca deixava uma questão em aberto nas
sessões. Por isso respirou fundo e tentou responder como entendia:
- Por que eu tenho de me machucar.
-Fisicamente, Alis? – perguntou o Doutor, mas ambos sabiam a resposta.
- Não. Não fisicamente. Eu tenho medo de me envolver emocionamente e ser abandonada, como meus pais verdadeiros ou... – Alis pensou um momento – Eu tenho medo de ser... não sei... julgada por ele, talvez.
- Uhm... talvez. – O Dr. Robert pensou um instante. – Você conversou com
Lucas depois do que aconteceu com Brade.
- Não... – falou Alis, puxando pela memória – Durante o meu julgamento,
eu resisti a todo custo olhar para ele, mas houve um momento em que nós
trocamos olhares.
- E o que viu nos olhos dele? – perguntou o psiquiatra.
- Não sei... preocupação, talvez.
- Preocupação, Alis. Nós nos preocupamos somente com as pessoas que significam algo para nós, você mesma já me disse isso antes.
- Ei sei, mas... mas eu matei três pessoas, Doutor. E uma delas porque eu quis, de caso pensado. Eu não mereço Lucas. Não mereço... não mereço o amor dele. – concluiu ela, com tristeza.
- Uhm... sei – falou o Dr. Robert, analisando o rosto de Alis. – Veja bem, Alis: você foi julgada por vinte e um jurados que não conheciam você, nem tinham qualquer tipo de contato com você. Os vinte e um escutaram sua história, seu histórico de abusos e, de forma unânime, votaram pela sua absolvição. Julgaram você inocente, Alis. Se eles, que não te conheciam, te inocentaram, porque acha que Lucas, o homem pelo qual você é apaixonada, irá te julgar culpada?
- Não sei... – falou Alis, depois de alguns segundos. – Mas, e se for assim... e se ele... e se ele não me perdoar pelo que fiz?
- Pode acontecer, claro. Não há como saber. Ele é uma pessoa diferente de você, Alis. Pode ser que não a julgue ou pode dizer que você é a pior mulher do mundo. É o direito de cada um pensar por si mesmo. Não é esse o problema, Alis, entende?
- Não. Para mim esse é o problema! – disse Alis, sem entender o rodeio
do Dr. Robert.
- Não, Alis. A questão toda é você conseguir enfrentar o que precisa enfrentar. E talvez, de fato, Lucas a julgue culpada e não queira jamais te perdoar. E então, você pode se magoar, mas terá que aprender a lidar com essa perda. Ou, por outro lado, vocês podem ficar juntos, e você também vai ter que aprender a lidar com essa situação. O que não dá para fazer, Alis, é evitar o mundo fora dos muros do Instituto. É essa a questão: você sempre foi machucada – tanto por seu padrasto quando por seu marido - e desenvolveu mecanismos de proteção. Mas esquivar-se não vai fazer os problemas desaparecerem. Talvez só criem outros problemas... entendeu?
Alis abaixou a cabeça, tentando analisar as palavras do Dr. Robert.
- Mas...
- Quanto mais tempo você demorar para enfrentar uma situação, mas
difícil ela parecerá, Alis. Você está aqui há 8 meses. O juiz sentenciou você a
apenas seis meses de tratamento. É você quem decidiu ficar, mas não poderá
ficar aqui para sempre, você sabe disso... – falou ele, de forma suave e
enérgica ao mesmo tempo.
Alis respirou fundo. De fato, era verdade que já havia passado do tempo
de tratamento especificado pelo Juiz, mas não se considerava preparada para
sair daquele lugar.
- A sessão de hoje acabou, de qualquer forma. – falou o Doutor,
observando o relógio de mesa. – Mas quero que pense nisso, leia o outro livro
que lhe dei e conversaremos na quinta-feira!
Alis assentiu e saiu da sala do Dr. Robert para o corredor, onde havia
um banquinho de espera. Maria Almeida, uma das colegas de quarto de Alis,
estava ali, aguardando. Ela parecia nervosa, balançava as pernas agitadamente.
Quando Alis saiu da sala, ela logo se ergueu e passou por ela, como se não a
conhecesse.
O caso de Maria era muito parecido com o de Alis, embora o diagnóstico
havia sido muito diferente. Maria também sofreu abusos do marido, mas um dia
acordou à meia-noite, ensopou o marido de gasolina e o queimou vivo. Foi
inocentada pelo júri, mas sentenciada a 10 anos de tratamento. Isso porque o
Dr. Robert havia testemunhado, dizendo que Maria era esquizofrênica. Ela
escutava vozes e se não fosse medicada e tratada, poderia matar novamente.
Com Alis, foi diferente. Já no julgamento o Dr. Robert testemunhara que
Alis tinha o tal ‘Transtorno de Personalidade Esquiva’. Disse que não julgava
Alis capaz de assassinar uma pessoa e que, apesar de estar sendo julgada por
três assassinatos, somente um indicava intenção (o homicídio de Brade). A
reação de Alis no homicídio de Brade, segundo o psiquiatra, foi causada por um
forte estresse emocional. A promotora argumentou, dizendo que Alis já havia
estado sob estresse emocional na presença de Brade. Chegou a mostrar as fotos
de Alis que ainda tinha manchas roxas no estomago. Rememorou o testemunho da Ir.
Agatha e Ana Maria sob o período em que estivera encarcerada por Brade.
O Dr. Robert rebateu dizendo que a situação que aconteceu no orfanato
era diferente. Não era somente Alis em perigo, mas Ir. Agatha, as religiosas,
as crianças, a irmã gêmea de Alis e, principalmente, Lucas Trevor, pelos quais
Alis nutria laços emocionais. Foi essa situação de ameaça que disparou em Alis
a reação defensiva que resultou no assassinato de Brade.
O júri a considerou inocente das acusações de homicídio culposo de Amélia
e Dante e doloso de Brade, mas o Juiz solicitou um período de tratamento
psiquiátrico no instituto estadual.
O Instituto de Tratamento Psiquiátrico do Estado era muito próximo de
uma prisão. Os quartos eram individuais e pareciam celas minúsculas e sufocantes.
Não havia área externa e os funcionários pareciam sempre sobrecarregados com a
quantidade excessiva de pessoas. Era um lugar depressivo e horrível e Alis
achou que definharia ficando seis meses naquele lugar.
Para sua sorte, porém, o Dr. Robert, solicitou sua transferência para o Instituto Psiquiátrico ‘Santa Luzia’ no qual era também diretor. Só meses mais tarde, Alis descobriu que foi Lucas quem havia solicitado a transferência e quem havia pagado pelo seu tratamento naquele instituto particular que era muito diferente do anterior: os quartos eram divididos com três pessoas, mas eram amplos e as camas confortáveis, com janelas ao invés de grades.
Claro, havia monitoramento constante, mas Alis tinha permissão para ir aos jardins, um pátio externo com árvores e flores no qual passava as tardes.
Foi o que fez naquele dia. Como as sessões do Dr. Robert eram sempre nas
terças, quintas e sextas à uma hora, tinha das duas até as cinco para ler ao pé
de salgueiro, onde havia um banquinho.
Passou antes no seu quarto e apanhou o outro compêndio que o doutor lhe
dera cujo título era: “Os esquivos e seus mecanismos”. Passou pelo corredor
central, avisou o porteiro que iria sair e alcançou a saída. O sol bateu forte
em seu rosto, mas ao aproximar-se do salgueiro, viu que a sombra e o vento
melhoravam o clima quente. Sentou-se e abriu o livro, no primeiro capítulo:
‘Entendendo a Personalidade Esquiva’.
Naquela tarde, porém, estava difícil concentrar-se na leitura. Pensava
em Lucas. Ele havia sido tão bom para com ela, tão compreensivo.
Ela, no entanto, desde que fora internada, na verdade, desde o dia em
que cometera o infame assassinato de Brade, não permitira que ele a visitasse
enquanto estava na prisão e depois, ali, no lugar que ele mesmo estava pagando.
Era injusta. E sabia disso. Uma vez o Dr. Robert lhe dissera: ‘Você acha
que não o merece, Alis. Mas e Lucas? Ele não merece ficar com a mulher que ama
depois de tudo o que fez por você?”.
Aquela era uma questão que afligia seu coração. Ela não queria ser
egoísta, mas estava sendo ao não permitir que ele a visitasse. Era um mecanismo
de proteção, como aprendera no outro livro, mas, mesmo compreendendo o que era,
não era fácil se livrar dele. Desejava mais do que tudo no mundo, poder ver
Lucas novamente, poder abraça-lo e se entregar em seus braços agora que estava
livre de qualquer ameaça e, ainda assim, não conseguia se presentear com esse
conforto, como se quisesse se punir. O problema é que, além de estar se
punindo, poderia estar também punindo ao homem que amava.
Por outro lado, havia a possibilidade que ela mais temia, a de que ele a odiava e que queria visita-la apenas para dizer o quanto ele a desprezava. E isso assustava Alis, mais do que tudo no mundo. Ainda não sabia como fora capaz de matar Brade. Mas sabia muito bem o que sentiu na hora: alívio, alívio por estar livre, por ter aniquilado as ameaças que circundavam as pessoas que amava. Lucas, principalmente. Mas sabia, tinha a consciência do que estava fazendo. Diferente de Maria Almeida que escutava vozes e que precisava estar sempre sob tratamento químico, Alis agira de forma consciente. E talvez fosse isso o que mais a alarmava.
Sabia que precisava enfrentar agora o julgamento de Lucas. Sabia que precisava encará-lo e depois, encarar o resultado daquele contato, mas nunca temeu tanto ver alguém na vida. Achou que fosse sentir isso com Liz, mas foi muito diferente. Foi até agradável a visita que recebera de Liz. Parecia que as duas finalmente haviam se entendido.
Liz a visitara há dois meses atrás, antes de receber o veredicto de seu
próprio julgamento. Liz estava respondendo em liberdade pela acusação de
mandato de assassinato do próprio pai, pelo qual foi absolvida e por obstrução
da justiça, pelo qual foi condenada. Isso aconteceu porque o rapaz que ela
havia contratado para dizer que havia participado do assalto de Eagleton e
acusar Liz quando Alis estava no seu papel confessou dizendo que fora Liz quem
tramara tudo. O rapaz ganhou imunidade para testemunhar, uma vez que nunca
participara do assalto feito a mando de Amélia, mas Liz não teve a mesma sorte
e foi sentenciada a dois anos de prisão. Foi acertado que ela cumpriria
apenas seis meses e o restante teria que prestar em serviços sociais. A ironia
era tanta que Liz concordou em servir no orfanato de Ir. Agatha como professora
de artes plásticas.
Quando Liz a visitou, ela mais ou menos já sabia o que a estava
esperando e, talvez por isso, pediu perdão a Alis e as duas se abraçaram. Alis
não sabia se as duas se encontrariam mais uma vez. Até porque, Liz havia dito
que os trinta milhões que Amélia havia desviado de Eagleton e que Liz havia
roubado de Amélia haviam sido liberados para ela. Ela disse que depois que
tivesse resolvido sua pendência com a justiça, intencionava viajar para Paris
de onde jamais voltaria. Entretanto, Alis acreditava que a história de Liz
continuaria ali, principalmente, quando Alex Cartumis costumava visitar Liz com
frequência com a tênue desculpa de estar verificando o andamento das coisas...
Agora, era a vez de Alis resolver também sua pendência, mas com Lucas.
Fechou o livro resoluta e ficou de pé. Caminhou de volta até a entrada
do edifício e passou pela portaria, cruzou o corredor principal e entrou no
escritório do Dr. Robert. Levou um susto ao ver que Maria Almeida estava lá.
- Nossa próxima sessão é na quinta, Alis – falou o Dr. Robert,
calmamente.
- Sei disso, mas acho que
já estou pronta!