PALAVRAS
DE DOUGLAS LORETO
Eu precisava
fazer aquilo. Eu precisava mentir. Antes que me julguem, eu posso contar tudo?
Minha mãe morreu quando eu tinha dezesseis anos. Não, ela
não era uma ricaça que caçava talentos no exterior. Eu menti pra vocês, eu
menti para Lara, eu menti para todos, mas eu precisava!
Eu fiquei sozinho no mundo. Não tinha pai, não tinha
família nem ninguém que me amparasse. Antes de acontecer aquela tragédia, era
só eu e mamãe no mundo. Depois, era apenas eu. Eu precisava me virar sozinho,
juntar minhas próprias forças e lutar se eu quisesse sobreviver naquela cidade
enorme que é o Rio de Janeiro.
Minha mãe morreu devido a uma pneumonia muito forte. Ela
não se tratava, dizia que tinha que trabalhar se quisesse manter o aluguel e as
compras do mês. Quando ela faleceu, tempos depois, eu fui despejado da casa
cuja nós morávamos, e fiquei sem ter para onde ir.
Dormi na rua por muitas noites. Passei muita fome, muita
sede e, às vezes eu não sabia se dava graças a Deus por chover , pois se eu
matava minha sede eu não podia dormir com tranquilidade.
E em que situação um garoto de dezesseis anos pode dormir
no meio da rua com tranquilidade?
Foi na rua que eu conheci uns caras. Eles que me
ensinaram a sobreviver àquela perigosa floresta que era a madrugada do Rio de
Janeiro. Bom, eles, Jennifer e Thayla não eram exatamente caras. Eram travestis. Sempre faziam programas num local próximo
onde eu “residia”. Tornei-me amigo deles, sempre me davam uns trocados. Certa
vez, quando eu os fazia companhia enquanto um cliente não chegava, um carro
parou perto de nós. O motorista abaixou o vidro.
— Oi, gato... — Thayla se escorou na janela do carro,
encarando o motorista.
Ele, por sua vez, afastou a travesti e ficou olhando para
mim. Olhava fixamente. Tinha por volta de 40 anos, roupas sujas, dentes
amarelos, provavelmente por ser fumante.
— Ei, você... Novo aqui?
— Err... Eu? Eu só tô fazendo companhia a elas. —
respondi.
— Não quer dar uma voltinha comigo? — ele puxou da
carteira uma nota de cem reais e a jogou pela janela do carro, de modo que ela
caísse perto de mim.
Eu não hesitei em pegar a nota de cem reais e guardar no
meu bolso, porém o que ele queria fazer comigo era tão sujo, estúpido e imundo
que me dava calafrios. Eu não queria. Mas
eu precisava.
***
Chorando, voltei para o flat. Aquele local era tão vazio
sem a Lara... Para minha surpresa, o gordo que Lara pegou comigo na cama
continuava lá.
—
Demorou hein? — ele deu uma tragada num cigarro imundo, tirou um bolo de notas
de dentro da camisa, pôs em cima do criado mudo e ficou olhando para mim.
— Vai embora.
Ele tentou tocar meu rosto, fazer algum tipo de carinho.
— Feliz aniversário. Coloquei unzinho a mais na quantia
que a gente combinou. Sinto muito pela sua namorada.
Ele mesmo foi até a porta e saiu.
As coisas de Lara ainda estavam ali. Seus chinelos, suas
roupas jogadas pela sala e pelo quarto. Na toalha eu ainda sentia o cheiro
dela... Era tão difícil saber que eu me mantinha com um dinheiro conseguido tão
clandestinamente. Que o aluguel daquele flat, aquele carro velho, tudo era
mantido com o dinheiro dos programas. O pior de tudo era achar que eu poderia
manter outra pessoa daquele jeito.
Alguém tocou a campainha. Atrás da porta havia um cara
bem apessoado. Trazia consigo uma mochila.
— Eu... eu sou... patrão da Lara... — ele gaguejava ao
falar comigo, talvez por Lara ter dito a ele por que fora embora — vim pegar as
coisas dela.
Eu não disse nada. Escancarei a porta, sentei-me no sofá
e o homem, institivamente entrou, indo até o quarto e catando todas as peças de
roupa femininas que via pela frente. Saiu, em seguida, sem se despedir. Bateu a
porta.
☺
PALAVRAS
DE LARA PACHECO
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Apenas me restava contar toda a verdade a Marcelo, o dono
da livraria para qual eu trabalhei naquelas últimas semanas. Eu contei tudo,
inclusive que eu mentira a respeito da declaração da escola.
Ele foi muito gentil em me oferecer um copo d’água e
ainda em ir buscar minhas poucas coisas no flat daquele cara...
— Lara, se você precisava de um emprego, não precisava
ter mentido. — disse ele — de qualquer forma, se você quiser continuar trabalhando
aqui, eu mantenho o seu cargo. Se quiser, eu posso dar um jeito de conseguir os
seus documentos escolares e te matricular em uma escola daqui.
— Não, Sr. Marcelo, eu lhe agradeço muito — esfreguei os
punhos nos meus olhos, inchados por causa do choro — mas eu vou voltar para
minha cidade. Minha estadia aqui no Rio acabou.
Estava decidido. Com certeza meu pai não iria me querer
de volta, mas talvez meus amigos, Gabi, Valeska e até o Márcio, poderiam me
perdoar.
☺
PALAVRAS
DE GABRIELA CARVALHO
Depois daquela
situação terrível que presenciamos na casa dos Pacheco, quando vimos Sheila
tentar matar o próprio marido, Giuseppe, sufocando-o com os próprios seios,
Valeska, Márcio e eu ficamos preocupados.
Férias mais do que morgadas. Ponto. O medo de que algo
pior pudesse acontecer com o pai de Lara ainda me fazia ficar acordada. Sheila
era uma psicopata!
O que ela queria matando o velho?
Talvez uma herança!
Peguei o celular em cima da minha mesa de cabeceira.
Havia algumas SMS, todas de Valeska.
“Oi, preciso falar com você. Me
liga”
Quem tem celular com número da Oi sabe o que é isso. Você
vai pegar o celular, brilha os seus olhinhos quando vê uma mensagem de texto
não liga, e, quando lê, é essa mensagem que a operadora oferece àqueles que não
têm créditos.
Na verdade, eu também não tinha. Todos os números da
minha agenda são salvos com o famoso 9090 na frente.
Não querendo mudar de assunto, peguei o celular da minha
mãe e liguei para a Valeska. Eram três da manhã.
— A-Alô. Quem tá
falando? — disse ela, com um tom sonolento.
— Sou eu, criatura. Só vi tua mensagem agora. Mulher, tem
vergonha, coloca crédito nesse teu celular!
— Aff, nam, tu me
acorda uma hora dessas pra me mandar colocar crédito no celular? Eu tava
dormindo, sua égua!
— Não, sua tapada! Queria saber o que é que tu queria
comigo. Diz logo!
— Ah! — ela
pareceu se lembrar de algo importante — Gabi,
mulher, tu não acredita quem deu entrada no hospital onde minha mãe trabalha.
— Quem? Bora, fala logo!
— O Sr. Giuseppe.
Mamãe disse que ele está muito mal.
Fiquei alguns segundos em silêncio.
— Será que a Sheila
tem alguma coisa a ver com isso? Gabi, mulherzinha, eu não quero nem pensar.
— continuou Valeska.
— É óbvio que ela tem! Você mesma viu o jeito que essa
baleia pulou em cima do Sr. Giuseppe. Ela queria esmaga-lo, trucida-lo,
sufoca-lo com aquele monte de banha... olha, Valeska, eu tô preocupada. A
Sheila tá de olho na grana do velho, e é melhor que a gente avise a Lara. Eu
vou tentar procurar o tal do Douglas Loreto no Facebook e falar com ele.
Falamos mais um pouco e depois desligamos.
☺
PALAVRAS
DE LARA PACHECO
Não sabia se aguentaria a viagem, mas eu precisava voltar
pra casa. Aquela cidade me traria as piores lembranças da minha vida.
Adentrei no ônibus, escolhi uma poltrona e me sentei do
lado da janela. Encostei minha cabeça no vidro, fechei os olhos e tentei
adormecer. Eu desejava dormir para sempre. Ou, no máximo, a viagem toda. Pouco
provável.