CAPÍTULO 05
Durante a noite, Alis escutou novamente o barulhinho do bebê Lucas e levantou-se
para vê-lo. Como da outra noite, abafou a escuta da babá eletrônica com uma
fralda. Ninou-o nos braços por quase uma hora e depois deixou-o no berço,
contemplando a beleza do menino. Não havia conhecido o tal Dr. Dante, mas para
ela, o menino tinha os olhos de Lucas. Lucas parecia amar muito ao bebê. Seria
uma grande tristeza para ele descobrir a verdade. Depois de se certificar de
que o menino dormia, Alis retirou a fralda da babá eletrônica e abandonou o
quarto em silêncio.
O dia começou intenso naquela quinta-feira. Pela janela do quarto, Alis percebeu que no jardim da mansão, alguns homens montavam uma área e um conjunto de pessoas ensaiavam músicas em violinos, violoncelos, piano e flauta. Provavelmente a homenagem ao seu pai seria um grande evento.
Depois de arrumar a cama, resolveu tomar uma ducha bem rápida. Saía do
banheiro vestida apenas de toalha quando percebeu a presença de Lucas no seu
quarto.
- De novo a cama arrumada? – falou Lucas, naturalmente, mais preocupado em observar a cama do que Alis ali semi-nua. Ela, pelo contrário, enrubesceu de vergonha. Nunca nenhum outro homem além de seu marido a tinha visto daquela forma. E ficou com medo de que ele notasse as marcas roxas na perda e em outras partes do corpo – De qualquer forma, trouxe o vestido que eu gostaria que usasse, se for possível. Eu peço mais uma vez que pense na situação, Liz. Pare de querer provocar seu pai. Eu aposto que ele não está por aí para ver o que você faz ou deixa de fazer.
- Você não acredita na vida após a morte? – perguntou Alis, perturbada com o que Lucas dissera.
- Como se você acreditasse... – debochou Lucas, depositando uma caixa branca enorme sobre a cama de Alis.
Alis suspirou aliviada quando ele saiu.
Era o vestido mais lindo que já vira. De todos os vestidos que Liz possuía era o mais belo. Era preto, com detalhes em marrom dourado. Era tomara que caia, mas a saia era rodada e bufante como um belo vestido de princesa. Sentiu alguma dificuldade para se arrumar. Não costumava vestir coisas assim. O sapato (que também viera na caixa) era saltiagudo o que deixou Alis tensa. Eram sapatilhas e saltos baixos que costumava a vestir. Diferente da irmã, não conseguiu fazer aquela maquiagem pesada, mas pintou como pode os olhos e colocou uma sombra com tom sobre tom que ficou bem na sua pele morena-clara.
Por fim, admirou-se na frente do espelho. Parecia mesmo a sua irmã, elegante, os cabelos arrumados, maquiada. Mas sentia-se muito insegura e tremia de medo por alguém descobrir que ela não era Liz.
“Acalme-se, disse a si mesma. Se a família e a amiga de Liz não descobriram, ninguém haverá de saber...”, enquanto dizia isso, mantinha os olhos fechados. Quando os abriu, viu pelo reflexo do espelho que Lucas estava atrás dela e a observava.
- Você está bonita, muito bonita, Liz. Obrigado por ter concordado em vestir o que sugeri.
- Mas eu achei lindo o vestido! É como aqueles contos de fadas! – falou Alis, empolgada e levada pela emoção. Tarde demais percebeu que havia se excedido. Lucas a observava com o cenho franzido visivelmente desconfiado.
- Eu não sei o que você anda planejando, Liz... Se está pensando em me conquistar novamente, acho que está perdendo seu tempo. Não vou mudar o que eu disse no dia do funeral do seu pai. Sempre respeitei muito o seu pai e por isso, não vou abandoná-la depois da morte dele, mas não pense que vou deixá-los aqui por muito tempo. Assim que sua mãe se restabelecer, você, sua mãe e seu irmão vão sair da minha casa e da minha vida para sempre.
Alis não sabia o que dizer. A situação entre Lucas e Liz estava mais difícil do que Alis imaginava. Talvez mais difícil do que Liz imaginava, até. Ou Liz saberia de tudo, afinal, Lucas referia-se a algo que ele dissera a ela no dia do funeral do pai. Gostaria que Liz tivesse lhe dito esses detalhes.
A homenagem acabou se tornando uma grande festa. Havia um palco montado no jardim e várias mesinhas redondas e cadeiras espalhadas por um grande piso de madeira montado sobre a grama do jardim. Havia uma grande foto numa tela no palco e Alis logo imaginou que se tratava do pai de Liz, de quem a irmã não deixara nenhuma foto.
Ficou com muito medo durante a festa, por não conhecer aquelas pessoas,
mas por sorte, ficou ao lado da mãe durante todo o tempo que tomava a
iniciativa em cumprimentar as pessoas, geralmente pelo nome. Alis então
imitava, fingindo conhecer cada um deles.
Tudo saiu muito bem, com exceção de uma mulher ruiva que quando apertou a mão de Alis colocou força descomunal machucando sua mão e quando ela se aproximou de Alis, sussurrou no seu ouvido:
- Você me paga, cachorra vadia.
Alis ficou assustada com a mulher, mas quando ela se afastou, sorriu como se fossem boas amigas.
- DANTE... OH, MEU DEUS, ACHEI QUE NÃO VIRIA! – disse Amélia exageradamente, quando um homem adentrou o jardim, por dentro da casa. Alis virou-se automaticamente para contemplá-lo. Era um homem bonito. Era louro, alto, mas os seus olhos eram escuros. Esperava encontrar olhos claros como os do bebê Lucas. Ele aproximou-se de Amélia como uma cobra, com um sorriso debochado no rosto. Alis odiou-o no mesmo instante. Era ele quem estava destruindo a vida e a felicidade da sua irmã. Quando ele deu a mão para ela, Alis hesitou por alguns segundos, mas com medo de ser descoberta, resolveu cumprimentá-lo. Ele sorria como se fosse um cordeirinho, mas quando chegou perto do ouvido de Alis, sussurrou:
- Que diabos está havendo com você?
Alis ficou quieta e quando ele se afastou, não conseguiu disfarçar uma cara de desagrado. Olhou em volta e percebeu que a alguns metros de distância, Lucas olhava para ela, como se estivesse desconfiado de algo. Saberia ele do caso de Liz com Dante? Segundo Liz, Lucas não sabia de nada. Esperava que fosse assim.
Quando chegou no momento da homenagem, Lucas subiu ao palco. Disse, num pequeno discurso que Alastor Eagleton era um homem nobre, o maior prefeito que a cidade já tivera, um sonhador. Alis desejou poder conhecer aquele homem que despertava a admiração de Lucas que, esse sim, despertava a admiração de todos os presentes. Pensava distraída quando escutou seu nome e, despertando, olhou para o palco.
- Liz, venha... está na hora de fazer sua homenagem a seu pai. – Lucas dizia.
Alis não entendia, mas todos começaram a bater balmas, então ela se levantou e andou vagarosamente até o palco, ainda sem entender direito.
- Liz tem um talento excepcional para fazer discursos. – continuou Lucas a falar. – Tenho certeza de que ninguém saberá retratar em palavras Alastor tão bem quanto sua querida filha, minha esposa, umas das artistas plásticas mais brilhantes da atualidade.
Alis petrificou. Não que fosse uma ignorante. Pelo contrário, adorava discursar, principalmente ensinar e ensinava artes, algo que a aproximava de sua irmã. Entretanto, como ela poderia descrever o pai falecido de Liz se sequer o conhecera. “Deus, meu Deus, e agora?”, Alis perguntou-se sem saber o que fazer.
Lucas desceu do palco depois de ajudar Alis a subir. Olhou em volta, tentando pensar rápido, por fim, aproximou-se do microfone preparado para ela.
- Er... – começou, apavorada. – Er... hoje é um dia muito especial. Um dia em que nos lembramos do meu pai. Nós... nós tínhamos nossas diferenças como... como qualquer pai e filha, mas... meu pai... – Alis não sabia o que dizer. O que diria se aquele homem fosse realmente seu pai, o que poderia dizer? – M-meu pai... abriu o seu coração e fez por mim o que nenhuma outra pessoa poderia fazer... ele me adotou, me acolheu, deu-me amor e respeito e ensinou-me a ser quem eu sou... – Tentando buscar inspiração em volta, Alis olhou em direção de onde estava a pequena harmônica e onde um enorme piano de cauda estava. No mesmo instante teve uma ideia... – E por que as palavras não bastam para descrever o amor de uma filha por um pai, vou fazer uma coisa que vem do meu coração e da minha alma. Eu vou cantar e tocar uma canção que vou dedicar a meu pai...
Alis se aproximou de onde o piano estava. O homem que antes estava tocando saiu para dar lugar a ela. Alis sentou-se e olhou para as teclas. Irmã Ágatha a havia ensinado a tocar quando era uma menina. Ainda hoje, quando visitava o orfanato nos finais de semana, costumava praticar. Aquele piano de cauda negro e vistoso era muito diferente do velho piano que havia no orfanato. Pensou em alguns segundos no que iria tocar, depois decidiu tocar uma música que compora há muitos anos atrás, num dos aniversários de Ir. Agatha para homenageá-la. A canção falava de uma amizade construída a cada passo que as agruras da vida não podiam sufocar.
Quando terminou de cantar, percebeu um silencio sepulcral. E quando se levantou, o público presente explodiu em palmas. Alis agradeceu com uma reverencia e voltou tranquilamente a seu lugar. Dunga, Amélia e Lucas olhavam para ela como se ela fosse alguém totalmente diferente.
O prefeito da cidade, um deputado e um vereador também se pronunciaram com breves discursos, depois o jantar passou a ser servido.
A harmônica, então, recomeçou a tocar e alguns casais passaram a dançar numa área preparada para tal.
- Tenho certeza que Alastor está chorando de alegria e emoção onde está agora! – falou Amélia. – Meu Deus, Liz... sua voz... e você toca piano?
- É... desde quando toca piano assim, sis...? – perguntou Dunga, com ar de indignação. – Você abandonou as aulas quando tinha dez anos. Vai dizer que aprendeu por correspondência?
- Nunca imaginei que pudesse cantar... – falou Lucas, parecendo calmo – Nem vou falar do piano...
- Er... eu... tenho feito aulas às escondidas. – falou Alis, pensando rápido – Eu não queria que ninguém soubesse, até poder tocar bem.
- Bem o suficiente para arrasar nesse circo? – perguntou Dunga, desconfiado.
- Dunga... não é nenhum circo. Seu pai merece essa homenagem. – reclamou Amélia.
- Ah, mãe... depois do que ele fez com a gente? Merece mesmo? – desabafou Dunga, irritado. – Pra mim tudo isso não é mais do que um circo. Não consigo te reconhecer, Liz. Sei que está com medo de perder Lucas, mas não acredito que se sujeitou a fazer uma homenagem como a que fez... você sempre foi a primeira a odiá-lo, sempre.
Dunga levantou-se completamente alterado. Alis fez menção em segui-lo, mas Lucas segurou sua mão para que não se levantasse. Amélia, em seu lugar, levantou-se e sumiu por entre os convidados atrás do filho.
- Eu sei que Dunga está aborrecido. E para falar a verdade, Liz, há duas semanas atrás quando você disse que queria fazer um discurso durante a homenagem, achei que subiria naquele palco e que faria alguma coisa esdrúxula para ridiculariza-lo. Eu estava psicologicamente preparado para esperar pelo pior. E havia convencido a mim mesmo que seria a última vez. Entretanto, o que você fez, Liz, a canção, sua voz angelical... me surpreendeu. Eu não sei se isso foi sincero como você quer me fazer crer, ou foi alguma estratégia sua. De qualquer forma, é meu dever dizer obrigado. Significou muito para mim. Sei que você odiava seu pai, mas ele era muito importante para mim. Alastor foi um modelo de homem para mim. Infelizmente, ele não foi tão feliz nas escolhas, mas sei que ele tentou ser o melhor.
Alis ficou a contemplar Lucas sem entender direito o que havia acontecido. Era óbvio que tanto Liz quanto Dunga odiavam o pai, mas não sabia por qual motivo. De qualquer forma, achou que agira como poderia, nas circunstâncias que se lhe haviam apresentado.
Alis ficou calada. Achou que era o melhor a fazer. Lucas não continuou o comentário, até por que um importante político, um vereador que Alis não fez questão de memorizar o nome, sentou-se na mesa deles e ambos ficaram discutindo algo a respeito de um prédio abandonado, se deveriam ou não tombá-lo.
Alis não pode deixar de sentir-se um pouco ignorante. Sua cultura era muito diferente. Ela preocupava-se com seus alunos e em ser uma boa professora e uma boa orientadora. Fora dos muros da escola, preocupava-se em sobreviver dia-após-dia na presença de Brade. Nos finais de semana, quando podia escapar de seu marido, ia ao orfanato, ajudava como podia a irmã Ágatha, participava da missa e retornava para casa, sempre tomando o cuidado para voltar antes de Brade. Sua vida era limitada a horários e tarefas menores, assim julgava ela, ao contrário da postura de sua irmã que participava dessa roda de amizades e pessoas que eram importantes políticos, empresários, filantropos da cidade.
Entretanto, sabia que podia confiar na sua diretora, sabia que podia
confiar na Irmã Agatha e nas crianças. Aqui, nesse mundo, ninguém parecia
confiar em ninguém e todos tinham segredos.
Alis levantou-se depois de alguns minutos fazendo o papel de estátua, uma vez que não podia opinar no assunto. Havia visto Lisa em algum lugar e tentando encontrá-la, entrou no pequeno labirinto de cerca viva nos jardins da casa. Escutava vozes e risos de dentro do labirinto. Virou uma esquina quando deu de cara com Dante. Assustada, não conseguiu evitar quando ele simplesmente a jogou contra a cerca e apossou-se de seus lábios, apaixonadamente. Alis empurrou-o, mas como Dante era um homem grande, quase tão alto quanto Lucas, foi custoso para ela afastá-lo.
- Joguinhos, Liz? De novo? Que diabos pensa que eu sou? – falou ele, enfiando uma mão por dentro do decote de Alis que recuou apavorada.
- Pare! Alguém pode nos ver. – Disse ela, fingindo. Na verdade, não queria aquele homem asqueroso tocando nela.
- Isso nunca te incomodou antes, Liz. Você anda muito estranha, não tem ido aos nossos encontros. Não vou te esperar por muito tempo e você sabe disso. Um homem como eu tem necessidades que precisam ser supridas...
Alis teve vontade de vomitar. Era ele quem obrigava Liz a ter um caso, mas ele fazia entender que era o contrário. Será que poderia confiar em Liz quanto a relação dela com Dante?
- Er... Lucas anda desconfiado. – respondeu ela, pensando rápido, olhando em volta pensando em correr dali se aquele homem continuasse querendo avançar em cima dela. – Eu preciso voltar...
Quando Alis deu-lhe as costas, entretanto, sentiu as garras daquele homem em volta do seu braço.
- Tome cuidado com quem brinca, Liz Eagleton...
Alis saiu do labirinto de pernas bambas e voltou a mesa onde Lucas ainda
discutia com o tal vereador. Por sorte, Lucas nem percebeu sua presença e então
Alis pode ficar muitos segundos respirando até restabelecer sua cor normal.