Fortaleza, Janeiro de 2000.
PALAVRAS
DE GABRIELA CARVALHO
Na
minha cabeça, sempre soube que namoros poderiam foder uma grande amizade, mesmo
se esta tivesse sido construída com tijolos reforçados e mantida durante anos.
Sempre estudamos na mesma escola, onde, aliás, foi onde nos conhecemos;
ficávamos de recuperação sempre juntos, mesmo o mais nerd de nossos amigos ficava, só para nos ajudar. Oferecíamos
sempre os ombros, cada um, nos momentos mais difíceis para que estes servissem
de apoio para mentes estressadas e nervosas. Sempre fomos unha e carne, dedos
de uma mão só. Inseparáveis. Mas aí veio a nossa puberdade, nervos à flor da
pele, hormônios entrando em ebulição... o diabo à quatro. Essa parte você já
sabe se você tem mais de 14 anos. Se não tem, sorte a sua.
Nosso
primeiro contato foi em 2000, no jardim de infância. Na creche da escola
estadual. Eu me lembro muito bem quando eu, aos meus cinco anos de idade, tive
minha primeira experiência escolar. Minha mãe esperava que eu, como todas as
outras crianças, chorasse e suplicasse de joelhos para voltar pra casa e não
entrar na escola pela primeira vez. “Tá
serto”. Da calçada mesmo eu me soltei dos braços dela, corri e entrei na
instituição.
—
Gabi, filha, você esqueceu seu lanche!
Aí ela pegou pesado. Voltei e fui buscar minha
lancheirinha do Pequeno Urso, onde lá me esperava um pacote de salgadinhos
Tot’s (onda do momento) e um suquinho Jandaia de acerola. Como eu não sabia
muito bem como funcionava essas coisas de escola, assim que a Tia me conduziu
até minha sala, abri minha lancheira e comi meu lanche. Fiquei assistindo de
camarote todos aqueles bebês chorões esperneando por suas mamães. Eu ria
daquilo tudo, comendo meus salgadinhos, tomando meu suquinho e, claro, como
toda criança que se preze, tendo como um “tempero especial” aquele catarro
verde e salgadinho que descia do meu nariz (“eca”? Estamos entre amigos, ok?).
Uma menina chorona me chamou atenção. Ela era magrinha,
os cabelos pretos, lisos e, enquanto chorava, passava as costas do braço no
rosto, e misturava cabelo com meleca, uma loucura. Desci da minha cadeira e fui
falar com ela. Sabe-se lá Deus o porquê. Pensei por um instante que poderia ser
pela música do CD da Sandy e do Júnior que a Tia havia colocado no rádio
portátil que ela chorava. Os adultos sempre achavam que aquele CD iria manter
as crianças quietas. Típico.
“[...]
na primavera, calmaria... tranquilidade, uma quimera
Queria sempre essa alegria... viver sonhando, quem me
dera...
No outono, é sempre igual. As folhas caem no quintal...
Só
não cai o meu amor, pois não tem jeito, é imortal...”
—
Oi, bichinha, tudo bom? — inocentemente, perguntei. Ela não respondeu nada. —
Como é teu nome, bichinha?
Com
cara de choro, a menina enfiou a mão cheia de meleca dentro dos meus Tot’s
(ninguém resistia) e, de lá,tirou um monte de salgadinhos. A minha mão acertou
em cheio a cara dela.
—
Sua ladrona! Sua ladrona! Ô tia, ela roubou meus Tot’s! — bradei.
A
garota, por sua vez, puxou meus cabelos, e eu revidei. Rolamos no chão, uma
puxando o cabelo da outra, por alguns minutos. Esquecemos até o motivo de nós
brigarmos.
—
Sua cabelo de Bombril! — disse ela.
A
Tia enfim nos colocou separadas uma da outra durante toda a aula. Era aula de
Sandy & Júnior, porque a professora repetiu aquele CD até me dar uma dor.
Anos depois eu senti saudades dessa aula, principalmente quando comecei a
estudar Física.
Recapitulando,
encarei a magricela durante toda a aula, fazendo sinais de ameaça, como socar a
minha mão esquerda com a direita. Valeska, o nome dela, foi a única criança que
chorou a aula toda, e por minha causa. Se naquela idade eu já era perigosa,
imagine hoje em dia? Brincadeiras à parte, acabamos ficando próximas semanas
depois.Com um mês de convivência, éramos Valeska Soares e Gabriela Carvalho: a
dupla dinâmica da escola. Éramos tão chegadas que, anos depois, ficamos
menstruadas pela primeira vez na mesma época (acostumem-se).
Mas fugindo de tais detalhes, não tínhamos
interesse em nos aproximar das outras crianças. Até falávamos aqui, ou acolá
com a Lara Pacheco, que parecia humilde o suficiente para entrar pro nosso
grupo das excluídas. Ela era uma ruiva bonitinha, e que, anos depois, seria a
mais cobiçada pelos meninos. De dupla dinâmica, passamos a trio parada dura,
não que isso me interessasse. Eu gostava de ir à escola pra conversar, brincar,
ser feliz. Posso dizer que Valeska, Lara e eu aproveitamos ao máximo o período
da escola onde não precisávamos nos preocupar com notas, nem nada. Só em
brincar e, ao chegar em casa, passar a tarde assistindo aos desenhos da TV
Cultura. Santo canal 5 da TV aberta!
Eu,
Gabi, era a líder do nosso trio. Modéstia à parte eu era traquina desde
criança. Morena, cabelos cacheados que, quando estavam enxutos e soltos eram
mais difíceis de domar do que qualquer leão selvagem. Meus dentes da frente, os
definitivos, nasceram separados e maiores, como os daquela personagem de
quadrinhos, a Mônica. Nada que eu pudesse me estressar até então. Eu sabia
enfrentar as brincadeiras de todas as crianças trolls com socos na cara e ameaças do tipo “te pego na hora da
saída”. Isso foi um fator determinante para que eu pudesse me tornar líder nata
do grupo sem que Lara e Valeska pestanejassem, pois eu sabia as defender muito
bem de qualquer zoação.
Valeska
era a, digamos assim, menos esperta. Um pouco até ingênua. Certa vez, contei
uma piada para descontrair e ela não entendeu. À noite, quando eu estava em
casa, quase dormindo, minha mãe me acordara dizendo que Valeska estava no
telefone. Ela queria apenas dizer que havia entendido aquela piada.
Lara
era a mais neutra, mais quietinha. Eu sempre dizia que ela era sonsa, e ela
entendia aquilo como um elogio. Sim, desde pequerrucha bastava que ela
estalasse os dedos que os meninos da escola faziam o que ela quisesse. Sem
dúvida, era a menina mais bonita da escola, não nego. Mas o que ela tinha de bonita,
faltava-lhe de juízo.
Conhecemos
o membro que transformaria nosso “trio parada dura” em “quarteto fantástico”
apenas quando estávamos na alfabetização. Tínhamos seis anos de idade, sendo
que quase dois deles eram apenas de tempo de amizade. Lara, Valeska e eu,
passávamos as aulas juntas, assim como os recreios. Revezávamos no balanço, no
parquinho imundo da escola estadual.
Márcio
Ferrari era um menino muito inteligente, e esta qualidade às vezes se tornava
um defeito, pois ele sempre se achava o dono da verdade. Eu sempre odiei o
jeito que ele respondia a professora, desafiando-a e alegando que ela estava
errada. Seu vocabulário era requintado, anormal para um garoto daquela idade,
assim como o seu alto QI. Aliás, nós o chamávamos de Márcio QI. Todavia, ficamos com pena dele quando, certa vez
enquanto estávamos brincando no balanço, garotos da quarta série o chutavam sem
dó nem piedade enquanto ele esperneava no chão.
—
Vocês são uns desprovidos de qualquer intelectualidade! — dizia Márcio,
enquanto apanhava.
Lara
ficou no balanço, rindo, enquanto eu e Valeska fomos ajudá-lo.
—
Deixem ele em paz! — falei.
—
Olha só! O senhor cabeção tem duas namoradinhas! Que veadinho! Precisa ser
defendido por garotinhas. Haha! — disse um dos meninos da quarta série.
—
Boiola é você, que fica se trocando com gente pequena. Queria ver se você
brigaria com alguém da sua idade. Boiolão! Boiolão! — mostrei a língua e o dedo
do meio para ele e, enquanto isso, Valeska ajudava Márcio QI a se recompor.
Lara continuava rindo.
—
Ah, é, dentuça do cabelo ruim? E qual é o pente que te penteia? — ele e todos
os outros garotos começaram a rir. Eu, num impulso, chutei entre suas pernas. O
garoto caiu de joelhos no chão e lá ficou, se retorcendo com a dor.
Márcio
QI veio nos agradecer:
—
Garotas, permitam-me que eu agradeça pelo ato de coragem e dedicação para com
um simples e frágil rapaz de seis anos cujo vocês estão falando agora.
—
Hã? Menino, tu veio de que planeta hein? — perguntou Valeska.
—
Fecha essa matraca, Valeska, pelo amor de Deus! — recomendei. — Márcio, você
quer se juntar à gente? A gente divide o nosso biscoito com você. O que você
trouxe pro lanche?
—
Aqueles rapazes “pseudoalfabetizados” roubaram o dinheiro do meu lanche. —
contou Márcio. — Mas aceitaria um agrado de vocês, se não for muito.
Lara
Pacheco, já preocupada com as notas baixas, via na nossa recém-amizade com
Márcio QI um jeito de recuperar seu ano. Estendeu sua mão direita para ele para
cumprimenta-lo.
—
Oi, meninozinho. Meu nome é Lara.
Márcio
QI, por sua vez, deixou nossa amiga no vácuo e não apertou sua mão.
—
Oh, desculpe, Lara, mas ultimamente está havendo um surto de gripe que, para
prevenir, é melhor evitar qualquer tipo de contato humano, não?
O
menino andava com uma garrafinha de álcool gel para cima e para baixo, e achava
que todo tipo de contato com qualquer pessoa ocasionaria a ele uma doença
grave. Ele foi criado nos maiores mimos, preso dentro de casa, de onde só saía
para ir à escola ou para o cinema, quando tinha estreia de algum filme da Marvel. Até que um dia...
(continua após a abertura)
Mais precisamente no dia 11 de setembro de 2001, terça-feira. Estávamos todos na escola. As tias mantinham uma TV ligada dentro da sala de aula. Era dia de aula livre e algumas crianças ficavam no parquinho, outras ficavam na sala, como eu, Márcio QI, Valeska Soares e Lara Pacheco. A programação foi interrompida com aquela famosa vinheta do plantão da Globo: tã,tã,tã,tã,tã,tã,tã...
Nossa
amiga Valeska ficou de pé e começou a chorar e a gritar. Era a notícia do
incidente das Torres Gêmeas, mas a vinheta do plantão e as imagens dos prédios
desabando faziam não só ela, mas todo mundo ficar assustado.
Até
mesmo Márcio QI correu e apertou o botão de emergência. O barulho da sirene,
junto com o esperneio de Valeska, assim como a algazarra que todas as crianças
faziam, fez com que todas as professoras colocassem as mãos na cabeça sem ter o
que fazer.
Lara
me puxou pelo braço, pegou as nossas mochilas, e no meio daquele fuzuê todo,
ela me levou até o portão de saída da escola.
—
Hora de ir pro cinema. — disse Lara, escalando o portão, que era baixinho.
—
Mas a gente tem aula, mulher! — falei.
— Tá
todo mundo fugindo, Gabi! Vem, deixa de ser besta. Vai ser legal.
Além de Lara e eu, fugiram da escola naquele
dia mais dois garotos. Todos fomos ao cinema, mas não juntos. Eles foram na
frente. Não falávamos com eles, só sabíamos seus nomes, Douglas e João, pois
eram da nossa sala. O shopping era perto do colégio e logo estávamos lá para
vermos um filme que eu nem lembro, mas que Lara estava doida para ver. Venderam
ingressos para crianças de seis, sete anos de idade, desacompanhadas dos pais,
só um detalhe ínfimo. Lara cuidou de mentir, dizendo que os seus pais estavam
na fila da pipoca.
Havia
poucas pessoas na sala do cinema; sentamos na frente e, por estar escuro, não
vimos quem estava do nosso lado. Eram João e Douglas, os dois garotos que
também fugiram da escola.
— Tô
com fome. — disse.
—
Gabi, você é um saco sem fundo, mulher! A gente acabou de lanchar.
—
Mas tô com fome!
Lara
tirou da mochila um monte de moedas e me entregou.
—
Compra pipoca e traz pra mim.
Levantei-me,
e quando estava me encaminhando para a saída da sala do cinema, eis que pude
ver um dos garotos da nossa sala sentando-se próximo à Lara, no lugar onde eu
estava. Era o Douglas Loreto, eu tinha certeza. Acho que ele estava xavecando
minha amiga. Foi aí que a nossa amizade começou a ser destruída. Aos poucos.
NOVELA ESCRITA POR MÁRCIO GABRIEL
COLABORAÇÃO DE ANA GABRIELA E LUIZ GUSTAVO
DIREÇÃO DE FÉLIX CRÍTICA
COPYRIGHT© TVV VIRTUAL 2014, TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO E NÃO TEM NENHUM COMPROMISSO COM A REALIDADE
COLABORAÇÃO DE ANA GABRIELA E LUIZ GUSTAVO
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