DÉCIMO CAPÍTULO
(A
CENA É NARRADA POR FIDEL)
Senti-me a própria gata borralheira. Fui
humilhado por aquele homem mentiroso que se esconde dentro de um armário
imundo. Limpei cada centímetro da sujeira que ele fez, porém sabia que quando
acabasse eu não poderia sair.
Por mais que eu achasse Wagner atraente,
pensei muito e veio à minha cabeça a questão: será que valia a pena ser tratado
feito lixo?
Nos dez anos em que trabalhei naquela
mansão, aguentei de tudo, dos comentários às atitudes xucras daqueles dois. Mas
aquilo foi o fim da picada. Eu não sou nenhuma escrava, meu bem. Se acham que
eu iria esperar a fada madrinha aparecer, enganaram-se.
―
Pai, o que aconteceu? Por que está chorando? – Analú agachou-se para ficar na mesma altura em que eu estava.
―
Eu quero ir embora. Não vou trabalhar aqui. Vou pedir demissão. É isso o que eu
vou fazer. – Levantei-me e enxuguei as
lágrimas.
―
Pai, o senhor vai nesse show.
―
E vou mesmo. Ta pra nascer homem que vai mandar em mim.
***
Fidel
não era o mesmo sem aquele sorriso. Era um sorriso de superação, que foi
sofrido para ser conquistado. Ele não deixaria que ninguém o escravizasse.
Ele
mudaria totalmente. Colocaria uma roupa provocante, diferente das suas. Tornar-se-ia
mulher. Pelo menos naquela noite.
Fazia
muito tempo que ele não usava aqueles adereços. A peruca loira estava estranha,
e o salto alto parecia não ser mais seu amigo. Mas amizade é algo que tem que
ser conquistado. Reconquistado no caso.
―
(com voz grossa) To pronto. — Fidel pigarreia — (com voz fina) Quer dizer... To
pronta.
―
Pai... Você ta diferente! – exclamou Analú.
E
realmente estava. Fidel estava vestido de mulher, relembrando os velhos tempos
de Drag Queen, os quais saía escondido de casa para fazer shows em boates,
quando era casado com a mãe de Analú.
―
Hoje Stefanie Raio Laser vai divar no show da J-Lo!
***
O pouco dinheiro que tinha,
gastou com o táxi. Tudo isso para chegar com classe. Apresentou o suado
ingresso na bilheteria, mas antes de entregá-lo, deu-lhe um beijo.
O
ingresso era para a pista; logo um cara interessou-se por ele e o tirou para
dançar. A música da vez era cantada com Ivete Sangalo.
―
Por que você não vem comigo pra área VIP, hein gatinha?
O
cara que tirou Fidel para dançar mal sabia que se tratava de um homem. Ora, se
você não o conhecesse, também o confundiria. Mesmo com a idade, Fidel tinha um
corpo que deixaria qualquer mulher no chinelo.
―
Claro que aceito. – Fidel aceitou, porém apenas por que sabia que o seu patrão
estava no show com o seu motorista, curtindo. Fidel queria apenas dar o flagra.
***
Agora
Fidel tinha acesso à área VIP do show. Logo ele tratou de despistar o
pretendente e ir em busca de Wagner e Ugo. Logo ele os avistou. Wagner parecia
ter abandonado sua faceta séria, de pessoa doente e estava dando um sorriso que
não era de maldade, e sim de diversão. Alguns homens sem camisa o rodeavam, de
modo que estavam dançando sensualmente, provavelmente sendo pagos para aquilo e
também para ficarem de bico calado.
Ugo,
mais sério estava apenas encostado na parede tomando um drink.
Fidel
aproximou-se da cadeira de Wagner e abaixou-se. Deixou que os cabelos loiros
artificiais caíssem por cima dos ombros do homem.
―
Não tá vendo o meu estado, moça? Hoje não tem programa. E acho que nem nunca na
minha vida. – disse Wagner.
―
E quem disse que eu to em busca de programa? – Fidel força a cabeça de Wagner
com as duas mãos, de modo que o faz olhar fixamente para o seu rosto.
―
Hã? Fidel? – Wagner muda sua expressão completamente.
Um
paparazzo acaba se infiltrando na área VIP e tirando fotos das cenas.
***
Bruno
nem sente mais a dor do ferimento causado por Wagner na sua testa. Só pensa na
bela moça que sentira pena dele.
Ele
está hospedado no minúsculo apartamento do seu amigo Calebe, mas foi bem
recebido.
Bruno
pega uma cerveja na geladeira. Enquanto a abre, um flashback do acontecido mais
cedo vem à sua cabeça:
(Flashback)
―
Desculpe, Não tenho celular. Fui assaltada hoje cedo. Mas se você quiser me
encontrar, eu vou estar aqui.
―
Sempre?
―
Sempre.
―
Mais uma vez obrigado então, Ingrid.
O Flashback se interrompe com o
beijo de Bruno no rosto de Ingrid.
***
Enquanto isso, o barraco continua
no show da J-Lo.
―
(voz fina) Sou eu mesmo, patrãozinho. Quer dizer... Agora meu nome é Stefanie.
Gostou do flagra? Descobri o segredinho de vocês dois. SUAS BICHAS ENRUSTIDAS!
Ugo
cerra os punhos e sem mais, parte para cima de Fidel (no caso, Stefanie). Ela,
por sua vez, desvia o soco e diz:
―
(voz fina) Vai bater em mulher agora? Covarde! – Fidel tira a peruca e o salto.
— (voz grossa) Quero ver você bater em um homem, italiano filho da puta!
Fidel
dá um soco em Ugo, que o faz cair no chão.
―
Nem precisa abrir a boca pra dizer que eu estou demitido, Wagner. – Fidel o
encara. – EU me demito.
Fidel sai e deixa Wagner sem
palavras. Ugo tenta recompor-se levanta-se.
―
E agora, Wagner?
―
Agora a gente vai ficar sem mordomo e sem empregada. Mas não tem problema. A
gente chama uma faxineira lá da Flash e... Vive de comida delivery. O que acha?
Seremos apenas nós dois naquela enorme mansão.
Ugo sente náuseas e prende o
vômito.
***
Fidel
chega à mansão pronto para mandar Analú arrumar as coisas, porém estranha, pois é muito tarde e as luzes estão
ligadas. Sua filha não costuma ficar acordada até altas horas.
O
agora ex-mordomo dos Peregrini entra no quarto que divide com a filha e a vê
desmaiada no chão.
―
Analú? Analú, minha filha? Filha acorda!
Analú
não reage. Fidel sente que a pulsação da filha está fraca. Mesmo desesperado,
consegue correr até o telefone e chamar uma ambulância.
***
Finalmente
chega o dia, e amanhece ao som de Lobão
– Decadence Avec Elegance. Domingo de sol na grande Fortaleza. Alegria para
muitos e tristeza para outros. A mansão de Wagner Peregrini nunca esteve tão
vazia. O homem nota que Fidel e Analú foram embora, mas não levaram suas
coisas.
―
O que a gente faz com as coisas deles então? – Pergunta Ugo.
―
Taca fogo. – Wagner acende um charuto.
―
Senhor Wagner, não fume. Está doente.
―
Mas não tô morto. Taca fogo nos farrapos do Fidel e da filha dele. Ah, e depois
pede um japonês.
A campainha toca.
―
Vou lá atender.
―
Deixa tocar. Deve ser as testemunhas de Jeová.
A
campainha insiste. A pessoa deve estar bastante desesperada. Wagner muda de
ideia.
―
Vai ver quem é. Vai Ugo!
Ugo
dá um muxoxo e sai. Pouco tempo depois, Fidel entra na sala. Sua expressão é de
arrependimento.
―
Voltou Fidel? Ou quer dizer... Stefanie? — diz Wagner, sarcástico.
***
Bruno
acorda tarde. Passara a noite tomando cerveja. Vê que o seu amigo Calebe (que
também é paparazzo) mexe no computador.
―
Eu fui dormir tarde, mas você chegou tarde também, hein Calebe. Tava na gandaia
hein!
―
Gandaia nada, meu amigo. Fui trabalhar. Olha o presentinho que eu descolei pra
você.
Calebe
mostra na tela do PC fotos de Wagner em meio aos GoGo Boys, discutindo com um
travesti (Fidel) e fazendo tudo o que se possa imaginar na festa.
―
Isso... Isso é um tesouro, Calebe! O que você vai fazer com isso?
―
Vou vender pra uma revista concorrente da Flash. Vou ganhar uma grana.
***
―
Me desculpa doutor. Mas... Mas só o senhor pode me ajudar. – diz Fidel.
―
Eu? A bicha enrustida? No que posso ser útil?
Fidel
se ajoelha e pousa sua cabeça nos joelhos de Wagner, que está sentado na
cadeira de rodas. O ex-mordomo começa a chorar.
―
Me ajuda doutor! A Analú, ela tá entre a vida e a morte! Ela ta com um tumor no
coração e precisa fazer uma cirurgia.
Wagner empurra Fidel no chão.
―
E eu com isso?
―
A cirurgia custa vinte mil reais. Me ajuda! Me ajuda!
―
Não. Você vai pagar caro pelo que me fez ontem. Quem sabe a vida da sua filha
seja um bom custo...
―
Eu faço o que o senhor quiser, mas é a vida da minha filha que ta em jogo. Ela
não tem culpa.
―
Não? Então pede com jeitinho.
―
Como?
—
Beija os meus pés.
Fidel nem pensa, beija os sapatos
de Wagner.
―
Tira os sapatos. Eu quero que você BEIJE OS MEUS PÉS!
Fidel faz o que foi ordenado.
―
Bom garoto. Sua cachorra. Cachorra! Agora implora o meu perdão.
―
Perdão. Perdão! — Fidel chora de joelhos. — Se o senhor me emprestar esse
dinheiro eu posso trabalhar aqui até quitar a dívida.
Wagner
aceita o acordo. Ao meio dia, Analú entra na sala de cirurgia.
***
O
primeiro dia de trabalho de Cidinha e Ingrid é cansativo. Porém, sabem que
aquela é uma oportunidade única.
―
Com o dinheiro desse mês a gente já pode alugar uma casinha. – diz Ingrid,
limpando uma vidraça.
―
Fato. Ainda bem que a sua mãe adotiva deixou a gente ficar lá por uns tempos.
Mas amiga, a gente tem que trabalhar logo num domingo?
―
Deixa de corpo mole. Agora limpa essa vidraça aí que ta toda manchada.
Finalmente
o horário do almoço. Cidinha fica no refeitório enquanto Ingrid, que está sem
fome resolve sair do prédio para tomar um ar. Duas mãos tapam os seus olhos.
Ela tenta adivinhar, mas não consegue.
―
Quem é?
As
mãos soltam o rosto da mulher. Ela vira e surpreende-se ao ver Bruno.
―
Você?
―
Sim, sou eu.
Bruno repara na roupa de Ingrid.
―
Espera aí. Você não disse que era secretária? O que tá fazendo com roupa de
faxineira?
Ingrid
se assusta e corre, atravessando a avenida sem olhar. Um gol de cor preta a
atropela. Ingrid rola a avenida e cai inconsciente.